Kleber Lago
O boêmio de carteirinha, meu amigo e companheiro de mais de meio século, resolveu arrumar as malas, pôr o violão debaixo do braço e, sem aviso prévio, sair ao encontro de outros que partiram antes dele.
Dentro da noção de tempo que por aqui se tem, o tempo que se passou desde a partida de João já foi mais que suficiente para o encontro com as pessoas alvo de sua procura. E quem sabe não esteja ele, agora, num evento poético-musical, com o outro João, Diouro, Ribamar Lopes, Ribamar Carvalho, William Fontoura, Damião Sousa e com outros cultores das letras e das artes que passaram por este nosso mundo e dele já se foram.
De acordo com o que asseveram alguns estudiosos do outro lado da vida, é de paz e alegria o lugar a que nos destinamos, depois desta curta existência terrena. Chegam até a afirmar que, ali, todos convivem em condições de igualdade. Isso me leva a imaginar que nós, os poetas, cantores e músicos menores, em lá estando, não sentimos nenhuma dificuldade no relacionamento com os chamados maiores. E não seria nenhum exagero imaginativo inserir, nos eventos a que antes me referi, cenas com João Barreto satirizando heróis camonianos e shakespearianos, João do Vale cantando La Traviata, Damião Souza executando no acordeão trechos de Traumerei (Reverie) e da Nona Sinfonia, enquanto Camões e Shakespeare cordelizam criações de Ribamar Lopes, Caruso solta a voz no Pisa na Fulô, Schumann e Beethoven regem conjuntos musicais de sanfoneiros nordestinos...
Não afirmo nem nego que tudo isso esteja acontecendo por lá, da maneira como minha imaginação me levou a descrever. Mas asseguro que eu ainda estou do lado de cá da vida, pisando o chão de minha terra, entrando agora no Bar do Índio, local a que sempre me dirijo quando chego a Pedreiras, para encontrar amigos, conversar e, sob as mais variadas versões, ouvir notícias de fatos jocosos que envolvem intelectuais da cidade, tanto os que realmente o são quanto os que, embora não o sejam, assim se consideram.
Está desocupada a minha mesa predileta, a última do lado direito de quem entra. Sento-me, de costas para a parede, olhos voltados para o painel de fotos, afixado na parede oposta. Um sopro de lembranças me atinge a alma. Vem-me a impressão de estar vendo, sentado na mesma cadeira apertada entre a mesa e a pilha de vasilhames, o velho companheiro e amigo João, trocando ideias comigo, ao som de boa música romântica, entre goles de cerveja e baforadas de cigarro. Agora, é a saudade, simplesmente a saudade, provocando esta visão que só se apaga quando o pensamento me leva a ouvir a gargalhada estridente do Zé Roberto, depois de uma daquelas piadas sem graça por ele mesmo contadas e que só nele provocam riso.
Sei que ainda vou sentir muitas vezes a presença de João no Bar do Índio, da mesma forma como, nos intervalos desses “encontros”, estarei exposto aos ventos das lembranças de situações e de fatos que marcaram a existência de uma pessoa que só sabia ser do jeito que era para uns e que era para outros. Uma pessoa, cujas aparências não revelavam a quem não o conhecesse profundamente que nele não havia apenas o boêmio de carteirinha e o poeta de expressão espontânea, rica e forte.
João era bom esposo, pai exemplar e amigo leal, um homem de coração tão grande quanto os seus apelos boêmios e a sua verve poética. Embora não demonstrasse a todo mundo, tinha consciência de suas limitações, reconhecia os valores alheios e sabia pedir orientação àqueles que ele considerava capazes de responder a suas indagações, dirimir as suas dúvidas e fazer cessar os motivos de suas teimosias.
Orgulha-me ter sido uma dessas pessoas, ter recebido todo o seu respeito, ter conquistado a sua admiração e ter merecido dele um reconhecimento desproporcional ao pouco que lhe pude oferecer. Ele fez de mim uma espécie de divindade intocável, tornou-me crítico de sua vida e de seu trabalho poético, transformou-me em seu confidente, propagou de mim uma imagem bem maior do que a que realmente tenho e nunca permitiu que, em sua presença, alguém ensaiasse sequer uma tentativa de macular-me a dignidade. Não me escondia nada e se sentia à vontade para falar-me de seus problemas existenciais e para se aconselhar comigo.
É este o João de quem vou lembrar-me para sempre: o João que, além de tudo por que se fez conhecer e apesar da aparência de homem forte e até certo ponto despreocupado, carregava em si uma grande dose de inquietação, em face de algumas dúvidas, incertezas e medos, cujas visitas à mente humana se tornam mais frequentes, quando, ao alcançarmos o estágio da vida em que as debilidades físicas começam a se acentuar em nós, somos levados a uma consciência maior das nossas fragilidades diante do desconhecido.
A mim, seu amigo e confidente, João me revelava essa consciência. A propósito, num dos nossos últimos encontros antes de sua partida, ele, lamentando não ter podido oferecer materialmente aos seus familiares tudo o que havia desejado, como garantia de um futuro que embora humilde fosse sem problemas, disse-me do seu conforto por ter conseguido encaminhar os filhos para o bem, manter no núcleo da família um clima de união, fraternidade e respeito, e preservar no peito um grande sentimento de amor por todos. De repente, olhou-me no fundo dos olhos e me declarou, voz embargada, que me deixaria simbolicamente esse amor como herança, para que, no caso de ele se ir antes de mim, eu continuasse, em nome dele, a dedicá-lo aos seus entes queridos... E é o que tenho feito.
Através de você, aos poucos vou sabendo nomes de poetas que jamais pensei que Pedreiras pudesse dar.Fico orgulhosa,como pedreirense que sou, de através de você, saber que existem tantos talentos desconhecidos de muitos pedreirenses também gosto da maneira como você decreve tão bem esses personagens e isso me faz lembrar de meu marido de saudosa memória.Não sabia que o Diouro já havia falecido.Parabens a voce.
ResponderExcluirLindo, comovente!
ResponderExcluirCarmen Sousa
Esta crônica não diz só do poeta João Barreto, fala indiretamente da grandeza de tua alma e do valor que sabes dar a uma grande amizade.
ResponderExcluirCláudia Arôso
Uma bela homenagem de um grande poeta a outro.
ResponderExcluirCarlos Borges.
O poeta não enxerga profundamente, mas amplamente. Na amplidão do poeta João de Sá Barrêto, ele via o mundo numa ótica de várias vertentes segmentadas, onde por toda vida traduziu esse sentimento em poesia, boemia, alegria, melodias, mas, sobretudo na sua inata simplicidade. Hoje com certeza o céu está mais radiante e feliz com a chegada de João Barrêto (Membro Fundador da Academia Pedreirense de Letras) sendo recebido pelos poetas e escritores maranhenses: Corrêa de Araújo (Fundador da Academia Maranhense de Letras); Gonçalves Dias; Bandeira Tribulzi; Sousândrade; Artur Azevedo: Catulo da Paixão Cearense e João do Vale.
ResponderExcluirGUARDA NOSSA VAGA AÍ SEU JOÃO!
ResponderExcluirJaz o corpo, mas ficou o homem
Obra cearense de poesia mestra
A voz timbrada por sua verdade
Ora de tom intenso, ora sereno
Desprezo aos infames e medíocres
Estudante eterno da simplicidade
Sabia gastar com riso o senso comum
Algemado apenas pelos seus desejos
Bendizia aos céus por sua família
Açoitado pelos anos e pelo prazer
Resistiu valente às suas inquietudes
Rompeu com o luxo, percebendo o lixo
Eis aí uma perda que a gente sente
Também nos alegrou a sua existência
Ontem juntos..., amanhâ reencontro
Por favor leiam TANTO nos alegrou sua existência.
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