O CADERNO DE UM POETA (parte
final)
José
Chagas*
[...]
O caderno contém mais de 60 sonetos, entre os quais há mesmo um em que o
poeta nos lembra a missão do sonetista, a afirmar que “ele é capaz de pôr todo o universo / no espaço extremamente limitado
/ de duas quadras e de dois tercetos.” Essa é de fato a missão. Mas nós,
versejadores do mundo, somos todos capazes disso? Quantos universos, em 14
versos, pôde Shakhespeare colocar?
Bem,
a verdade é que cada um de nós tem o seu universo particular. Kleber tem o
seu, que Pedreiras, sua terra. E esse universo está muito bem dentro do
livro, que é uma homenagem feita à cidade, em seu aniversário. É livro de
mais um poeta de que a cidade pode se orgulhar. E é com justa razão que ele
mesmo diz: “Exaltá-la é dever de que
não fujo, / no que me vejo igual a João do Vale / e
ao magistral
|
Corrêa de Araújo.” É isso aí,
na lírica voz conjunta de gratidão dos filhos que amam sua terra.
No mais, pergunto agora: quem será como
Milton, o poeta de O paraíso perdido,
que só escrevia um soneto quando sabia que tinha de viver ou de morrer por
ele? Claro que não haveremos de chegar a esse extremo, nós que não temos
paraíso perdido nem achado. Melhor é seguir o que Kleber Lago
inteligentemente adota: “Assim, logo
que o peso dos meus anos / alcance o nível que eu não mais suporte, / vou
escrever meu último soneto, / mas falando da vida, não da morte.” É uma
boa proposta. Esperamos, porém, que os anos não lhe pesem tanto e que esse
nível insuportável não se dê tão cedo, para que ele possa escrever ainda
muitos bons sonetos antes desse último.
*José Chagas (†)
Da Academia Maranhense de Letras
|
1
O VELHO SOBRADO
Hoje
eu o vejo assim: soturno e triste,
Comprometido
em suas estruturas.
Contudo,
está de pé e ainda resiste
Ao
avanço constante das rupturas.
Protejam-no,
que o tempo – clava em riste –
Pode
dar-lhe pancadas bem mais duras!
Olhem
que tudo quanto nele existe
É
parte de um passado de venturas!
Paredes,
janelões e a telha parda
São
testemunhas visuais da glória
E
do esplendor da velha São Luís.
Esse
sobrado, em seu silêncio, guarda
Muitas
estórias e também a história
Que
o que se chama História não nos diz.
|
2
MINHA AMBIÇÃO
Não vim aqui
para criar raiz,
Pois bem sei
que esta vida é passageira.
Do que tinha
a fazer, muito já fiz
E o resto
vou fazendo sem canseira.
Minha grande
ambição foi ser feliz!
Se vivo em
paz e tenho essa maneira
De ser e de
fazer que sempre quis,
Que mais na
vida pode haver que eu queira?
Foi muito
pouco o que pedi a Deus,
Mas não
posso falar que aos dias meus
Tenha
faltado a sua proteção.
A alegria
que mostro no semblante
Bem diz que
Ele me deu mais que o bastante
Para
satisfazer minha ambição.
|
3
MEARIM
Durante
o estio, estreito e preguiçoso,
entre
as matas e praias serpenteias,
tendo
a te preservar vivo e piscoso
grande
afluência de pequenas veias.
Vindo
as chuvas, te fazes caudaloso
e
espalhas pelo vale grandes cheias,
tornando
o solo fértil e dadivoso,
mesmo
os lençóis das marginais areias!
Para
mim, és um Nilo e tens também
todo
o valor de hierática entidade
que,
para o povo hindu, o Ganges tem.
Tanto,
que ao mergulhar em tuas águas,
de
minha alma lavo a iniquidade
e
do meu coração removo as mágoas.
|
4
JOÃO
Criança,
ele vendia pirulito
A
cantar pelas ruas seu refrão:
–
“Pirulito, enrolado no palito!
Cada um custa apenas um tostão”...
Rapaz,
em novo e cansativo rito,
Ajudava
o “pedreiro em construção”,
E
já ia criando algo bonito
Em
ritmo de xote e de baião.
Nobre
em bondade, humilde em plena glória,
Rico
de fama e pobre de dinheiro,
Não
ficou rico, mas marcou a história!
Hoje,
ele está compondo para os anjos
Baiões
– que certo anjo sanfoneiro
Vai
adequando ao céu, com seus arranjos.
|
5
FELICIDADE
Quando
a felicidade está presente,
Qualquer
coisa da vida nos compraz.
Assim,
quem é feliz já plenamente
Deseja
sê-lo ainda muito mais!
Felicidade
é tudo o que se sente
Num
estado de alma que nos faz
Conhecer
quanto valem realmente
Sentimentos
de amor, ternura e paz!
É
sensação de íntimo prazer
Que
é capaz de sentir o próprio insano
No
pouco que consegue perceber!
Algo
sublime, extremamente leve,
Num
não-sei-que de bom que o ser humano,
Por
mais sábio que seja, não descreve!
|
6
PANTOMIMA
Sim,
na verdade, um simples caso incerto
Existiu
entre nós, nada além disso.
A
menor intenção de um compromisso
Mais
sério nunca me passou por perto.
Eu
mantive o caminho sempre aberto
Para
outro levá-la, e deu-se isso.
Ah!
Como me alegrou o seu sumiço
Ter
ocorrido no momento certo!
Tudo
me lembra o caso teatral,
Naquela
conhecida pantomima
De
pierrô, colombina e arlequim.
Só
que em outra versão, cujo final
Não
mostra como alguém que se lastima
O
pierrô do papel que coube a mim.
|
7
A AMBIÇÃO
Qualquer
pessoa muito ambiciosa
Faz-se
egoísta, dura, e para ter
O
que quer, nunca pára e nunca goza
Momentos
de ternura ou de lazer.
O
ambicioso atua como um louco
No
obsessivo anseio de ter mais.
Já
tendo muito, acha que tem pouco,
E
se tem tudo, não se satisfaz.
A
ambição é o mal – não tão pequeno –
Que
atinge com fortíssimo veneno
Nosso
comportamento, na raiz.
E
a quem na vida ocupa o tempo inteiro
Na
busca de poder, fama e dinheiro,
Não
sobra tempo para ser feliz!
|
8
FILHO E AMANTE
Toda
vez que essa vida me desterra,
Meu
pensamento, enquanto estou distante,
Muita
coisa bonita desenterra
E
a Pedreiras me leva a cada instante.
Quando
alguém se refere à minha terra,
Entro
logo no assunto e, num rompante,
Proclamo
o amor imenso que se encerra
Em
mim, seu filho e ao mesmo tempo amante.
Exaltá-la
é dever de que não fujo,
No
que me vejo igual a João do Vale
E
ao magistral Corrêa de Araújo.
Deixo
claro, em mensagens verdadeiras,
Que
não conheço o que mais me regale
Do
que ser um dos filhos de Pedreiras!
|
9
MOMENTOS
Um
sonho, uma emoção, uma passagem
Da
vida, nada é mais do que um momento
Que
acontece durante essa viagem
Que
nem sempre fazemos a contento.
Momentos
longos na cronologia,
Que
não nos marcam nem deixam saudades,
A
gente esquece, como ocorreria
Se
se tratasse de efemeridades.
Outros
momentos duram quase nada,
Mas
ficam como que eternizados
Na
memória dos nossos sentimentos.
O
nosso amor – de curta temporada,
Mas
cheio de virtudes e pecados –
É,
com certeza, um desses momentos!
|
10
O
DESPERTAR NO SERTÃO
Lá
pelas quatro horas, já se sente
O
saboroso e inconfundível cheiro,
Quando
a dona da casa, ao fogareiro,
Dilui
pó de café na água fervente.
O
velho galo, inflando o peito quente,
Agita
as asas, canta no poleiro;
E,
desse jeito, o dono do terreiro
Insiste
em despertar o sol nascente.
Sim,
despertar o sol. Pois, no sertão,
Costuma-se
cuidar da plantação
Antes
mesmo que o sol no céu desponte.
O
sertanejo já está na liça,
Enquanto
o sol ainda se espreguiça
Por
trás de uma colina no horizonte.
|
11
RECADO
Sonhando
em vão, teus anos tens levado.
E
não me escutas, por mais que eu te diga,
Servindo-me
dos termos de um ditado,
Que
“sonho não põe massa na barriga”.
Já
decidi deixar-te sossegado.
Para
evitar constrangimento ou briga,
Vou
expurgar de mim esse cuidado
De
te levar minha palavra amiga.
Mas,
como sonhas por razões vazias,
Deixo-te
o meu recado derradeiro:
–
Se queres viver sempre de utopias,
O
mais aconselhável é saíres
À
procura do pote de dinheiro
Enterrado
onde acaba o arco-íris.
|
12
IRRELEVÃNCIA
Não
houve aquele envolvimento forte
Que
nos conduz às raias da loucura,
Gozando
todo tipo de ventura,
Sem
que mais nada, além de nós, importe.
Não
houve aquele afã que dá suporte
À
relação, tornando-a mais madura,
E
boas emoções nos assegura
Até
quando remamos contra a sorte.
Esse
amor não fez peso na balança
De
meus casos de amor mais relevantes.
Dele
o que me restou foi, na verdade,
Uma
pequena sombra na lembrança,
Que
se desfez no tempo muito antes
Que
pudesse tornar-se uma saudade.
|
13
VINÍCIUS
Foi-se
o que me restava de alguns vícios
Aos
meus sessenta e três anos de idade,
Quando,
nos braços da felicidade,
Chegou-me
o filho a quem chamei Vinícius.
Com
cuidados por ele, a vida adoço.
E,
para vê-lo alegre e com saúde,
Até
ontem fiz tudo quanto pude
E
estou fazendo hoje o mais que posso.
Ao
pensar no amanhã, fico inseguro,
Porque
passei a ter pelo futuro
Alguns
receios que, antes, eu não tinha.
Contudo,
não me falta a esperança
De
segurar as mãos dessa criança
Até
que ela consiga andar sozinha.
|
14
O SONETISTA
O
versejar de hoje evidencia
como
os poetas, pouco a pouco, estão
pondo
de lado a forma de expressão
mais
nobre e encantadora da Poesia.
O
soneto sublima em harmonia
métrica,
rima, ideia e emoção,
e
legitima até um termo vão
que
outro contexto não comportaria.
Para
o bom sonetista, é leve o verso,
tão
fácil quanto as notas de um dobrado
para
as bandas que trocam nos coretos.
E
ele é capaz de pôr todo o universo
no
espaço extremamente limitado
de
duas quadras e de dois tercetos.
|
15
MODELO
Mantendo-se
bonita e graciosa,
Em
tudo faz notar que lhe perdura
O
glamour da modelo tão famosa,
Predileta
de um ás da alta costura.
Não
chega ainda a ser mulher idosa,
E
o tempo quase não lhe fez ranhura
Na
luzidia pele cor-de-rosa
Nem
lhe roubou a clássica postura.
Diante
do charme de seu corpo esguio
Em
perfeita harmonia com seu rosto
De
expressões sensuais e formas belas,
Agora,
que a conheço, desconfio
De
que, nela, até roupa de mau gosto
Pôde
se destacar nas passarelas.
|
16
POETA
DE ÁGUA DOCE
Muitas
pessoas sentem minha ausência
Na
terra onde nasci à beira-rio,
Mas
a marcar de minha procedência
Está
presente nas canções crio.
É
verdade que, por conveniência,
Eu
venho residindo anos a fio
No
litoral, já livre da aparência
De
interiorano rústico e arredio.
Chego
até a passar por um praiano
De
origem, por viver à beira-mar
E,
longe de querer gerar o engano,
Agir
e proceder como se o fosse.
Mas
quem me lê vai logo constatar
Que
sou mesmo um poeta de água doce.
|
17
INSACIÁVEL
Vejo-te
enlouquecida, delirando
Sob
os delicadíssimos açoites
De
meus carinhos em teu corpo, quando
Em
tua casa faço meus pernoites.
Se
percebo que perdes o comando
De
teus atos, eu digo: – Não te afoites,
Pois estamos apenas começando
Nossa estória de mim e uma noites!
Porém,
mais forte do que meus apelos
São
teus desejos. E, na madrugada,
Eu
tenho mesmo é de satisfazê-los.
De
que forma, em que tempo, pouco importa,
Já
que, às vezes, não ficas saciada
Nem
quando a luz do dia bate à porta!
|
18
MEU
ÚLTIMO SONETO
Falo
muito da vida, e a Deus sou grato
Por
esses anos bons que já vivi.
A
morte é tema de que pouco trato,
Embora
ela me ronde por aí.
Não
lhe dou importância, pois, de fato,
Só
como vivo poderei aqui
Ser
lembrado mais tarde, por um ato
Ou
por um dos poemas que escrevi.
Vivo é que penso,
ajo, enfrento enganos,
Contorno
as confusões em que me meto...
Assim,
logo que o peso dos meus anos
Alcance
o nível que eu já não suporte,
Vou
escrever meu último soneto,
Mas
falando da vida, não da morte!
|
Lago, Kleber.
Caderno de Sonetos / Kleber Cantanhede Lago. São Luís: KCL, 2007