quinta-feira, 26 de julho de 2018

SONETOS DE ONTEM E DE HOJE PARA SEMPRE IV - Textos do livro Caderno de Sonetos (Parte 2)



        O CADERNO DE UM POETA (parte final)
                                                  José Chagas*

[...] O caderno contém mais de 60 sonetos, entre os quais há mesmo um em que o poeta nos lembra a missão do sonetista, a afirmar que “ele é capaz de pôr todo o universo / no espaço extremamente limitado / de duas quadras e de dois tercetos.” Essa é de fato a missão. Mas nós, versejadores do mundo, somos todos capazes disso? Quantos universos, em 14 versos, pôde Shakhespeare colocar?
Bem, a verdade é que cada um de nós tem o seu universo particular. Kleber tem o seu, que Pedreiras, sua terra. E esse universo está muito bem dentro do livro, que é uma homenagem feita à cidade, em seu aniversário. É livro de mais um poeta de que a cidade pode se orgulhar. E é com justa razão que ele mesmo diz: “Exaltá-la é dever de que não fujo, / no que me vejo igual a João do Vale  /  e ao magistral
             

Corrêa de Araújo.” É isso aí, na lírica voz conjunta de gratidão dos filhos que amam sua terra.
 No mais, pergunto agora: quem será como Milton, o poeta de O paraíso perdido, que só escrevia um soneto quando sabia que tinha de viver ou de morrer por ele? Claro que não haveremos de chegar a esse extremo, nós que não temos paraíso perdido nem achado. Melhor é seguir o que Kleber Lago inteligentemente adota: “Assim, logo que o peso dos meus anos / alcance o nível que eu não mais suporte, / vou escrever meu último soneto, / mas falando da vida, não da morte.” É uma boa proposta. Esperamos, porém, que os anos não lhe pesem tanto e que esse nível insuportável não se dê tão cedo, para que ele possa escrever ainda muitos bons sonetos antes desse último.

*José Chagas (†)
Da Academia Maranhense de Letras


1
             O VELHO SOBRADO

Hoje eu o vejo assim: soturno e triste,
Comprometido em suas estruturas.
Contudo, está de pé e ainda resiste
Ao avanço constante das rupturas.

Protejam-no, que o tempo – clava em riste –
Pode dar-lhe pancadas bem mais duras!
Olhem que tudo quanto nele existe
É parte de um passado de venturas!

Paredes, janelões e a telha parda
São testemunhas visuais da glória
E do esplendor da velha São Luís.

Esse sobrado, em seu silêncio, guarda
Muitas estórias e também a história
Que o que se chama História não nos diz.

2
              MINHA AMBIÇÃO

Não vim aqui para criar raiz,
Pois bem sei que esta vida é passageira.
Do que tinha a fazer, muito já fiz
E o resto vou fazendo sem canseira.

Minha grande ambição foi ser feliz!
Se vivo em paz e tenho essa maneira
De ser e de fazer que sempre quis,
Que mais na vida pode haver que eu queira?

Foi muito pouco o que pedi a Deus,
Mas não posso falar que aos dias meus
Tenha faltado a sua proteção.

A alegria que mostro no semblante
Bem diz que Ele me deu mais que o bastante
Para satisfazer minha ambição.


3
                 MEARIM

Durante o estio, estreito e preguiçoso,
entre as matas e praias serpenteias,
tendo a te preservar vivo e piscoso
grande afluência de pequenas veias.

Vindo as chuvas, te fazes caudaloso
e espalhas pelo vale grandes cheias,
tornando o solo fértil e dadivoso,
mesmo os lençóis das marginais areias!

Para mim, és um Nilo e tens também
todo o valor de hierática entidade
que, para o povo hindu, o Ganges tem.

Tanto, que ao mergulhar em tuas águas,
de minha alma lavo a iniquidade
e do meu coração removo as mágoas.

4
               JOÃO

Criança, ele vendia pirulito
A cantar pelas ruas seu refrão:
– “Pirulito, enrolado no palito!
Cada um custa apenas um tostão”...

Rapaz, em novo e cansativo rito,
Ajudava o “pedreiro em construção”,
E já ia criando algo bonito
Em ritmo de xote e de baião.

Nobre em bondade, humilde em plena glória,
Rico de fama e pobre de dinheiro,
Não ficou rico, mas marcou a história!

Hoje, ele está compondo para os anjos
Baiões – que certo anjo sanfoneiro
Vai adequando ao céu, com seus arranjos.


5
                FELICIDADE

Quando a felicidade está presente,
Qualquer coisa da vida nos compraz.
Assim, quem é feliz já plenamente
Deseja sê-lo ainda muito mais!

Felicidade é tudo o que se sente
Num estado de alma que nos faz
Conhecer quanto valem realmente
Sentimentos de amor, ternura e paz!

É sensação de íntimo prazer
Que é capaz de sentir o próprio insano
No pouco que consegue perceber!

Algo sublime, extremamente leve,
Num não-sei-que  de bom que o ser humano,
Por mais sábio que seja, não descreve!

6
                PANTOMIMA

Sim, na verdade, um simples caso incerto
Existiu entre nós, nada além disso.
A menor intenção de um compromisso
Mais sério nunca me passou por perto.

Eu mantive o caminho sempre aberto
Para outro levá-la, e deu-se isso.
Ah! Como me alegrou o seu sumiço
Ter ocorrido no momento certo!

Tudo me lembra o caso teatral,
Naquela conhecida pantomima
De pierrô, colombina e arlequim.

Só que em outra versão, cujo final
Não mostra como alguém que se lastima
O pierrô do papel que coube a mim.


7
                  A AMBIÇÃO

Qualquer pessoa muito ambiciosa
Faz-se egoísta, dura, e para ter
O que quer, nunca pára e nunca goza
Momentos de ternura ou de lazer.

O ambicioso atua como um louco
No obsessivo anseio de ter mais.
Já tendo muito, acha que tem pouco,
E se tem tudo, não se satisfaz.

A ambição é o mal – não tão pequeno –
Que atinge com fortíssimo veneno
Nosso comportamento, na raiz.

E a quem na vida ocupa o tempo inteiro
Na busca de poder, fama e dinheiro,
Não sobra tempo para ser feliz!
  
8
              FILHO E AMANTE

Toda vez que essa vida me desterra,
Meu pensamento, enquanto estou distante,
Muita coisa bonita desenterra
E a Pedreiras me leva a cada instante.

Quando alguém se refere à minha terra,
Entro logo no assunto e, num rompante,
Proclamo o amor imenso que se encerra
Em mim, seu filho e ao mesmo tempo amante.

Exaltá-la é dever de que não fujo,
No que me vejo igual a João do Vale
E ao magistral Corrêa de Araújo.

Deixo claro, em mensagens verdadeiras,
Que não conheço o que mais me regale
Do que ser um dos filhos de Pedreiras!


9
                  MOMENTOS

Um sonho, uma emoção, uma passagem
Da vida, nada é mais do que um momento
Que acontece durante essa viagem
Que nem sempre fazemos a contento.

Momentos longos na cronologia,
Que não nos marcam nem deixam saudades,
A gente esquece, como ocorreria
Se se tratasse de efemeridades.

Outros momentos duram quase nada,
Mas ficam como que eternizados
Na memória dos nossos sentimentos.

O nosso amor – de curta temporada,
Mas cheio de virtudes e pecados –
É, com certeza, um desses momentos!
 
10
     O DESPERTAR NO SERTÃO

Lá pelas quatro horas, já se sente
O saboroso e inconfundível cheiro,
Quando a dona da casa, ao fogareiro,
Dilui pó de café na água fervente.

O velho galo, inflando o peito quente,
Agita as asas, canta no poleiro;
E, desse jeito, o dono do terreiro
Insiste em despertar o sol nascente.

Sim, despertar o sol. Pois, no sertão,
Costuma-se cuidar da plantação
Antes mesmo que o sol no céu desponte.

O sertanejo já está na liça,
Enquanto o sol ainda se espreguiça
Por trás de uma colina no horizonte.
  

11
                       RECADO

Sonhando em vão, teus anos tens levado.
E não me escutas, por mais que eu te diga,
Servindo-me dos termos de um ditado,
Que “sonho não põe massa na barriga”.

Já decidi deixar-te sossegado.
Para evitar constrangimento ou briga,
Vou expurgar de mim esse cuidado
De te levar minha palavra amiga.

Mas, como sonhas por razões vazias,
Deixo-te o meu recado derradeiro:
– Se queres viver sempre de utopias,

O mais aconselhável é saíres
À procura do pote de dinheiro
Enterrado onde acaba o arco-íris.

12
             IRRELEVÃNCIA

Não houve aquele envolvimento forte
Que nos conduz às raias da loucura,
Gozando todo tipo de ventura,
Sem que mais nada, além de nós, importe.

Não houve aquele afã que dá suporte
À relação, tornando-a mais madura,
E boas emoções nos assegura
Até quando remamos contra a sorte.

Esse amor não fez peso na balança
De meus casos de amor mais relevantes.
Dele o que me restou foi, na verdade,

Uma pequena sombra na lembrança,
Que se desfez no tempo muito antes
Que pudesse tornar-se uma saudade.


13
                      VINÍCIUS

Foi-se o que me restava de alguns vícios
Aos meus sessenta e três anos de idade,
Quando, nos braços da felicidade,
Chegou-me o filho a quem chamei Vinícius.

Com cuidados por ele, a vida adoço.
E, para vê-lo alegre e com saúde,
Até ontem fiz tudo quanto pude
E estou fazendo hoje o mais que posso.

Ao pensar no amanhã, fico inseguro,
Porque passei a ter pelo futuro
Alguns receios que, antes, eu não tinha.

Contudo, não me falta a esperança
De segurar as mãos dessa criança
Até que ela consiga andar sozinha.

14
             O SONETISTA

O versejar de hoje evidencia
como os poetas, pouco a pouco, estão
pondo de lado a forma de expressão
mais nobre e encantadora da Poesia.

O soneto sublima em harmonia
métrica, rima, ideia e emoção,
e legitima até um termo vão
que outro contexto não comportaria.

Para o bom sonetista, é leve o verso,
tão fácil quanto as notas de um dobrado
para as bandas que trocam nos coretos.

E ele é capaz de pôr todo o universo
no espaço extremamente limitado
de duas quadras e de dois tercetos.  

15
               MODELO

Mantendo-se bonita e graciosa,
Em tudo faz notar que lhe perdura
O glamour da modelo tão famosa,
Predileta de um ás da alta costura.

Não chega ainda a ser mulher idosa,
E o tempo quase não lhe fez ranhura
Na luzidia pele cor-de-rosa
Nem lhe roubou a clássica postura.

Diante do charme de seu corpo esguio
Em perfeita harmonia com seu rosto
De expressões sensuais e formas belas,

Agora, que a conheço, desconfio
De que, nela, até roupa de mau gosto
Pôde se destacar nas passarelas.

16
         POETA DE ÁGUA DOCE

Muitas pessoas sentem minha ausência
Na terra onde nasci à beira-rio,
Mas a marcar de minha procedência
Está presente nas canções crio.

É verdade que, por conveniência,
Eu venho residindo anos a fio
No litoral, já livre da aparência
De interiorano rústico e arredio.

Chego até a passar por um praiano
De origem, por viver à beira-mar
E, longe de querer gerar o engano,

Agir e proceder como se o fosse.
Mas quem me lê vai logo constatar
Que sou mesmo um poeta de água doce.


17
            INSACIÁVEL

Vejo-te enlouquecida, delirando
Sob os delicadíssimos açoites
De meus carinhos em teu corpo, quando
Em tua casa faço meus pernoites.

Se percebo que perdes o comando
De teus atos, eu digo: – Não te afoites,
Pois estamos apenas começando
Nossa estória de mim e uma noites!

Porém, mais forte do que meus apelos
São teus desejos. E, na madrugada,
Eu tenho mesmo é de satisfazê-los.

De que forma, em que tempo, pouco importa,
Já que, às vezes, não ficas saciada
Nem quando a luz do dia bate à porta!

18
       MEU ÚLTIMO SONETO

Falo muito da vida, e a Deus sou grato
Por esses anos bons que já vivi.
A morte é tema de que pouco trato,
Embora ela me ronde por aí.

Não lhe dou importância, pois, de fato,
como vivo poderei aqui
Ser lembrado mais tarde, por um ato
Ou por um dos poemas que escrevi.

Vivo é que penso, ajo, enfrento enganos,
Contorno as confusões em que me meto...
Assim, logo que o peso dos meus anos

Alcance o nível que eu já não suporte,
Vou escrever meu último soneto,
Mas falando da vida, não da morte!


     Lago, Kleber. Caderno de Sonetos / Kleber Cantanhede Lago. São Luís: KCL, 2007