O CADERNO DE
UM POETA - trechos
José
Chagas *
[...]
“E o que logo se pode dizer é que ele, indiferente aos poetas que, hoje em dia,
torcem o nariz para o soneto, revela-se um sonetista dos mais hábeis,
obedecendo rigorosamente às regras fixadas, com um surpreendente domínio do que
já parece ter como ofício. Até se torna evidente que, em nossos tempos, diante
do menosprezo que alguns têm para com essa fixa estrutura poemática, não se precisa
não só de talento, mas também de coragem.
Kleber
Lago tem as duas coisas. Disse-me que praticamente faz versos, dede quando
criança. E realmente deixa-nos a impressão de que brinca de sonetear, com
tantra facilidade que às vezes corre o risco de prejudicar a tessitura de
alguns versos, na espontânea força de sua expressividade. Porque ele, sem
nenhuma dúvida, é o artesão perfeito do soneto tecnicamente perfeito, inclusive
com extraordinários recursos para solução de alguns problemas de rima. Se nesse
seu caderno, alguns sonetos são resultado de mais habilidade do que
propriamente de emoção estética, o que importa é que em sua grande maioria,
temos belos artefatos poéticos, legitimados por um sadio fluxo de natureza
lírica, na linha de um sonetista dos melhores que temos". [...]
*José Chagas(†)
Da Academia Maranhense de Letras
1
SONETOS
Os
sonetos que escrevo são pedaços
de
expressão da poesia que povoa
momentos
que atravesso sem fracassos
nessa
jornada que não faço à toa.
São
imagens poéticas dos laços
que
me ligam somente à banda boa
da
vida, onde caminha a firmes passos
a
parte do meu eu que ama e perdoa.
Meus
sonetos traduzem explosões
de
diversificadas emoções
que
do íntimo arranco e ponho em cima
de
folhas de papel – organizadas
em
linhas muito bem metrificadas
e
enriquecidas de cadência e rima.
|
2
ESTILO
Eu
não desejo a perfeição suprema,
Mas
venho impondo à vida o meu estilo.
E,
se acaso me surge algo que eu tema,
Ganho
força e ante o medo não vacilo.
Toda
vez que me encontro num dilema,
No
instante da opção, fico tranquilo.
Quando
não sei solver certo problema,
Escolho
amigos com quem dividi-lo.
Num
mar de dúvidas, procuro um porto
Onde
a certeza se faça presente.
Se
morre um sonho, me conformo e calo.
Mas
das cinzas de cada sonho morto
Eu
crio um novo sonho e sigo em frente,
Buscando
o meio de concretizá-lo.
|
3
NOTURNO
Quando
o dia escurece, logo cedo
Eu
me recolho ao quarto e abro a janela
Para
deixar a noite entrar por ela
E
vivê-la sem traumas e sem medo.
São
momentos de êxtase sem fim!
Eu,
na quietude, a me embalar na rede...
Os
astros projetando na parede
Um
bailado de sombras ante mim...
Portadora
de paz, ternura e encanto,
Cada
noite que adentra meu recanto
Enche-me
a alma de suavidade.
E,
nessa calma, posso perceber
Muita
coisa do fundo do meu ser
Que
não consigo ver na claridade!
|
4
PAIXÃO IMORTAL
Tinha
pele morena e olhos de gueixa
Alguém
que amei nos tempos de rapaz.
Seu
beijo era tão doce, como ameixa
Com
divino sabor de quero mais!
Tê-la
perdido não me inspirou queixa.
E,
confesso, pensei que ela jamais
Viesse
a ser a sombra que me deixa
Sem
um dia sequer de plena paz.
Onde
eu esteja, é só ouvir-lhe o nome,
Que
no meu peito reacende a chama
Da
paixão imortal que me consome.
Uma
saudade intensa me balança.
E
um demônio da mente logo trama
Um
reencontro nosso na lembrança!
|
5
CONTENTAMENTO
Não me
digas, meu Deus, que andei errado
Por ter
vivido tão intensamente
Venturas e
delícias do passado
Que ainda
fantasio em meu presente!
Não me
digas, Meu Deus, que estou cansado,
Que me resta
bem pouco pela frente
E que já
tenho de deixar de lado
Loucuras que
cometo em minha mente!
Eu continuo
andando entre as estrelas.
E me basta
sentir certas vontades,
Fico na
ânsia de satisfazê-las.
Assim, me
dou ao sonho e me contento
Ao
convencer-me de que são verdades
Muitas
coisas que faço em pensamento!
|
6
A ROCHA
Aproveito
a manhã ensolarada
E
saio a esmo, a caminhar sozinho,
Tranquilamente,
bem devagarzinho
Alheio
ao rumo da pequena estrada.
Eis
que uma rocha imensa e escarpada
Surge
à margem direita do caminho.
Então,
eu para ela me encaminho,
Decidido
a fazer uma escalada.
Subo
e vou encontrar no alto da rocha
Tenro
botão de flor que desabrocha
Numa
planta que, ao sol, ali viceja.
Sinto
que Deus, por meio dessa cena,
Quer
mostrar-me que a vida vale a pena,
Por
mais hostil que o ambiente seja!
|
7
O AMOR
Tudo
em nosso redor muda, no dia
Em
que o sinal do amor se manifesta.
O
mundo para nós se fantasia
E
a vida se transforma numa festa.
As
tristeza e dores vão-se embora,
Dando
vez à alegria e ao prazer.
Passamos
a sentir, a cada hora,
Uma
maior vontade de viver!
O
amor é sempre assim: como uma prece
Que
oramos com fervor, embevecidos,
Mas
totalmente alheios à razão.
É
que, quando na vida ele aparece,
A
gente só consegue dar ouvidos
Aos
apelos da voz do coração!
|
8
ÁGUA E PEDRA
Minha
cidade e seu formoso rio
Eu
vejo como dois entes sagrados
Que
estão, por laços íntimos ligados,
Numa
espécie divina de amasio.
Reside
em coisas simples e discretas
Toda
a poesia vívida onde medra
O
encanto desse idílio de água e pedra
Que
inspira prosadores e poetas.
Um
dia vim morar noutra cidade.
Dentro
do coreação trouxe Pedreiras
E
com ela arrastei o Mearim,
Cujas
águas, nas horas de saudade,
Sinto
correrem, mansas e fagueiras,
Por
um vale de amor, dentro de mim!
|
9
COVARDIA
Demorou
pouco para o lago ameno
Da
vida se tornar um mar revolto,
Por
causa de um amor intenso e solto,
Mas
também carregado de veneno.
Por
este amor, um outro eu enceno!
Pareço
um fugitivo atrás de um couto,
Longe
da paz em que me via envolto
E
do semblante outrora tão sereno.
Percebo
a cada dia, a cada hora,
Que
os problemas do amor que vivo agora
Tornam-se
mais difíceis e complexos.
Não
lhes dou solução enquanto é cedo
Por
covardia, traduzida em medo
De
enfrentar no futuro os seus reflexos.
|
10
REFLEXÃO
Deus
criou, sem ajuda ou parcerias,
O
céu, a terra, o mar, a luz que brilha...
E
fez toda essa imensa maravilha
Num
trabalho de apenas sete dias.
Em
águas, montes, vales, pradarias,
Deu
vida a cada ser que cresce e afilha.
Fez
surgir a energia, que fervilha
Até
na flor de pétalas macias.
Homem,
fui feito à sua semelhança.
Mas,
à razão que minha vida avança
Pela
reta que leva ao fim da estrada.
Vou
percebendo quanto em mim condeno
O
fato de ter sido tão pequeno
E
de não ter criado quase nada.
|
11
AO RIO DE JANEIRO
Rio,
tu és uma lembrança forte
Que
conservo bem viva na memória.
Minha
saudade, a taxa cumpulsória
De
amor que vou pagar até a morte.
Os
nossos laços nada há que os corte!
São
quase treze anos de uma história
Que
se passou do Centro à Zona Norte
E
do alto Leblon à velha Glória...
Meio-nortista,
fui por ti aceito
E
te curti livre do preconceito
E
de tudo que oprime e me sufoca.
Sou
parte tua e, em parte, me pertences!
Se
três quartos de mim são maranhenses,
Um
quarto, com certeza, é carioca.
|
12
O SERESTEIRO
A
tradição mantém, no interior,
O
seresteiro das noites de lua,
O
bizarro e romântico cantor
Que
a essa tradição não desvirtua.
Violão
junto do peito, o trovador
Dedilha
as cordas e abre a voz na rua,
A
interpretar lindas canções de amor
Que
despertam, no quarto, a “amada sua”.
Há
casos em que a “amada” ele conhece
Só
pela silhueta que aparece
Por
trás de um vidro fosco de janela.
Mas,
dentro da emoção que o arrebata,
Ele
sente, durante a serenata,
Que
é, de verdade, o namorado dela!
|
13
IMAGEM
DESBOTADA
Deixaste-me
uma foto do teu rosto
No
dia em que partiste. Eu a guardei,
Dando
a ela a importância que a suposto
Objeto
sagrado dá um frei.
Alguns
anos depois, tive um desgosto.
Para
ver como eras, procurei
A
foto lá onde eu a tinha posto,
E
toda desbotada a encontrei.
Desde
então, bem não sei se por castigo,
Mais
que eu venha tentando, não consigo
Lembrar
como o teu resto era de fato.
Dele
só tenho mesmo registrada
Na
lembrança uma imagem desbotada,
Igual
à que encontrei no teu retrato.
|
14
O
MENINO DO SINAL
Pela
manhã, consegue algum trocado
Junto
ao sinal; ao meio-dia, some
E
só retorna após ter inalado
Boa
dose da cola que consome.
Volta
completamente transtornado.
Estômago
vazio, mas sem fome,
Alheio
a tudo que acontece ao lado
E
esquecido, talvez, do próprio nome.
Anda
como um zumbi, entre medonhos
Monstros
que o cercam na imaginação,
Mostrando,
num olhar quase sem vida,
A
marca viva da falta de sonhos
E,
num rosto sem luz, toda a expressão
De
sua pobre alma entorpecida.
|
15
A
PRESENÇA DA ROSA
Há
rosas encarnadas, amarelas,
Brancas,
azuis, laranja e cor-de-rosa.
Mas,
pouco importa a cor que tenham elas,
Toda
rosa é macia e graciosa!
Pelos
campos, jardins, ruas, vielas,
No
chapéu de um moça donairosa,
Nas
casas, nas igrejas ou capelas,
Por
todo canto, está presente a rosa.
Nessa
vida de múltiplos momentos,
Não
há momento que não as comporte:
Festejos,
batizados, casamentos...
Há
rosas para toda ocasião:
Até
mesmo depois de nossa morte,
Elas
seguem conosco no caixão.
|
16
POESIA DE OUTROS VEIOS
Vivo
a falar de alguns sonhos bonitos,
De
amor sereno, de paixão ardente,
De
alegria, tristeza, paz, conflitos
E
de outras sensações próprias de gente.
Poucos
percebem, mas em meus escritos
Não
é sempre o meu eu que está presente.
Meus
poemas não ficam circunscritos
Somente
àquilo que minh’alma sente.
Muitas
pessoas há com quem converso,
Ouvindo
sobre suas emoções
Ante
fatos reais e devaneios.
Dessa
maneira, no que escrevo em verso,
Também
existem manifestações
De
poesia jorrada de outros veios.
|
17
CENAS DE UM POENTE
Sozinho,
em pensamentos absorto,
Sentindo
no meu rosto a brisa fria,
Olho
a tarde cair sobre a baía,
Enquanto
as velas vão voltando ao porto.
Por
entre as algas do marinho horto,
Botos
exibem sua acrobacia...
Uma
ave, que as plumas arrepia,
Flutua,
em surfe, sobre um galho morto.
Então
levanto para o céu a fronte
E
o vejo, junto à linha do horizonte,
De
manchas rubras todo borrifado.
Manchas
de sangue, sim, do sol-poente
Sendo
aos pouquinhos, poeticamente,
Pela
boca da noite devorado...
|
18
VIÚVA SUBURBANA
No
Meyer vi pela primeira vez
A
cândida viúva, na capela
Onde
casava minha amiga Inês
Em
cerimônia rápida e singela.
Hoje
nem sombra há de viuvez
Em
sua casa pequenina e bela,
Onde,
um fim de semana cada mês,
Mil
loucuras fazemos, eu e ela.
Não
impomos limites ao prazer
Nesses
dois curtos dias da semana.
E
até na copa costumamos ter
Relações,
na mesinha rangedeira,
Diante
de um pinguim de porcelana
Acomodado
sobre a geladeira.
|
Lago,
Kleber. Caderno de Sonetos / Kleber Cantanhede Lago. São Luís: KCL, 2007
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