sábado, 29 de outubro de 2011

HAICAI - FASCÍNIO... ENVOLVIMENTO

(Foto: Importada da Internet)

HAICAI: POESIA EM SÍNTESE

Acho que sou muito mais um versejador técnico do que um poeta inspirado. Por isso mesmo, durante todo o meu tempo de exercício na arte de versejar, priorizei três tipos de composições poemáticas que estão sujeitas à observância de normas de versificação:  o soneto, a quadrinha e o haicai, exercendo este último um fascínio especial sobre mim.

O haicai, forma de expressão poética tipicamente japonesa, teve como cultivador mais conhecido no mundo Matsuo Bashô (1646-1694), que codificou e instituiu os modelos normativos desse que é o mais sintético tipo de poema, por meio do qual busca o poeta registrar um quadro da natureza, um acontecimento, uma impressão, de maneira extremamente resumida e com sentido completo.

No Brasil, antes e durante a época do Movimento Modernista, Afrânio Peixoto fez-se grande defensor da nacionalização do haicai. Mas o primeiro a publicar haicais neste país foi Luiz Aranha, ao entremear alguns deles em seu livro Poema Giratório.

Entre outros cultivadores do haicai, que iniciaram ainda na primeira metade do século passado, citam-se Guilherme de Almeida, Valdemiro Siqueira Jr., Gil Nunesmaia, Oldegar Vieira, Osório Dutra e Abel Pereira.

Na contemporaneidade, cabe ressaltar o esforço dos poetas sintetistas Haroldo Campos, Augusto Campos e Décio Pignatari em traduzir ou transcrever para o nosso idioma o tradicional haicai japonês. Assim também, não se pode deixar de mencionar outros poetas que se dedicaram ao haicai liberado das amarras normativas, a exemplo de Milôr Fernandes, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Olga Savari e Sérgio Marinho.


ABEL ME DESPERTOU O GOSTO PELO HAICAI

(Abel Pereira)

                  Cultivo o tipo de haicai mais clássico, no molde adotado por Guilherme de Almeida: com título, rimado, desenvolvido em três versos, sendo o 1º e 3º de cinco sílabas e o do meio, de sete sílabas.

Sem nenhuma dúvida, o que me despertou o gosto pelo haicai foi a leitura do livro Colheita do poeta baiano Abel Pereira (1908-2006), que passei a considerar o mestre do haicai brasileiro, graças à sua inimitável capacidade de síntese e à sua aprimorada técnica de composição. De Abel, tive mais tarde a oportunidade de ler Poesia até Ontem, Mármore Partido e Haicais Vagaluminosos. É a linha dele que venho seguindo até hoje. E confesso que, na empolgação com o que pude haurir desse grande poeta, cheguei a parafraseá-lo (sem plagiar) algumas vezes, como nestes exemplos:

“Com tamanho zelo / bem vês como o japonês / soube concebê-lo”. (Abel Pereira)

Com tal perfeição, / haicais não encontro iguais / no próprio Japão. (Kleber Lago)

“Motivos diversos. A nossa alma. O que possa / dizer-se em três versos”. (Abel Pereira)

Somente em três versos, / de repente vai a gente / criando universos. (Kleber Lago)

UMA PEQUENA MOSTRA DOS MEUS HAICAIS


    ÓDIO
    Semente ruim
que, por enquanto, não planto
    cá no meu jardim.

    CULTO
    Num rito perfeito,
noite e dia adoro Lia
    no altar do meu peito.

    FUMAR
    Prazer de momento,
que passa, quando a fumaça
    se desfaz no vento.

    TRAIÇÃO
    De repente, ataca
a mão fria e nos enfia
    nas costas a faca.

    LEMBRANÇA
    Retrato pintado
com zelo na mente pelo
    pincel do passado

    DECORAÇÃO
    É com mágoa e dor
que enfeito o leito desfeito
    desse nosso amor.

    ESPERANÇA
    Verde amarelado
que ponho ainda no sonho
    de ter-te a meu lado.

    CAUSA E EFEITO
    Um simples bom-dia
de  você,  como  se  vê
    me causa alegria.

    PODER
    Razão para alguém
dizer e, às vezes, fazer
    o que não convém.

   INIBIÇÃO
   De repente, míngua
a ideia e, ante a plateia,
   silencia a língua.

    DETERMINAÇÃO
    Buscar por espaços
na vida, sem temer lida
    e sem poupar passos.

    ASSASSINATO
    Aos golpes da serra,
eis que tomba o velho ipê,
    e a vida se encerra.
    MENSAGEM MATINAL
    No dia que nasce,
preciso ver um sorriso
    a luzir-te a face.

    POENTE
    Ninguém foge à sorte
de andar tanto e terminar
    nos braços da morte.

    SACRIFÍCIO
    As duras pelejas
para ter como atender
    a tudo que almejas.

    DESILUDIDO
    A esmo no mar,
descrente vaga e pressente
    que não vai voltar.

    DE REPENTE
    Morreu, mas só vai
saber da morte ao se ver
    diante do Pai.

    CANOEIRO
    Movendo a canoa,
rema a rima do poema
    que declama a proa.

    APAIXONADO
    Em mar agitado,
cego à razão, eu navego
    num barco furado.

    DESENCANTO
    O forte amargor
de absinto que hoje sinto
    nesse nosso amor.

    DESCASO
    Por mero capricho,
Lia pôs minha poesia
    no cesto de lixo.

    FELIZ
    Rumo ao meu poente,
torno a vida bem vivida
    e caminho em frente.

    PIPA
    Flutua e balança
na fina linha e fascina
    o olhar da criança.

    FRAQUEZA
    Motivo por que
eu tento ainda um momento
    de amor com você.
    VORACIDADE
    Como um predador
voraz, pegas quem atrais
    e matas der amor.

    MEARIM
    Ninguém o socorre
no  leito  já  raso  e  estreito
    onde aos poucos morre.

    PEDREIRAS
    Fonte predileta
de poesia, onde sacia
    a sede o poeta.

    INDIFERENÇA
    Um governo ausente
e alheio à dor que há no meio
    dessa pobre gente.

    MEDO
    Eu temo os sem-terra
quando os vejo se agrupando
    em campos de guerra.

    QUASE MULHER
    A maravilhosa
transmutação do botão
    que se torna rosa.

    INCOERÊNCIA
    Se nunca me assumes,
nem sendo poeta, entendo
    esses teus ciúmes.

    CONFIRMAÇÃO
    Que meus atos provem
que envelheço, mas pareço
    comigo ainda jovem.

    GOLADA
    Lá era mostrado
que  sexo  tinha  nexo
    com vício e pecado.

    NA POESIA
    O sublime alcança
João Barrêto, em seu soneto
    Pálida Lembrança.

    MARCAS
    As rugas do rosto
na verdade são da idade,
    e não de desgosto.

(Kleber Lago – Um Pouco de Cada Momento / Quadras para os Setenta, Haicais e Trovas Soltas / Haicais)  


                 A mostra acima é dedicada a todos os simpatizantes do haicai. Quero, porém, encerrar esta postagem com os que escrevi, ao tomar ciência da morte material de Abel Pereira, próximo de completar os seus 98 anos de vida terrena E os publico, como homenagem, in memoriam, ao saudoso poeta ilheense, em cuja poesia aprendi a envolver-me e a fascinar-me, no exercício de testar o meu poder de síntese, parafraseando-o ou criando, mas sem deixar de seguir os seus rastros nesta arte, em relação a qual não se pode negar-lhe primazia no Brasil. 
   
       PARTIDA
   O mestre de Ilhéus,
subindo num voo lindo,
   partiu  para os céus.

     INSUBSTITUÍVEL
   Não teremos mais
ninguém, aqui, que tão bem
   se expresse em haicais.

          VAZIO
   Eu lamento quanto
vazia  fica  a  poesia
   de síntese e encanto.

Abel Pereira mudou-se para a Morada Eterna em 21 de maio de 2006. No dia a dia celestial, eu só posso imaginá-lo ocupado em seu prazeroso ofício. E o vejo sentado, pena em riste, sintetizando peças e peças de cânticos, para que os anjos prestem louvores poéticos a Deus, sob forma de haicai.

Kleber Lago   

13 comentários:

  1. Bonitos esses minúsculos poemas. Precisa ser craque para dizer muito com poucas palavras...
    Mario Sanches

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  2. Gostei desses poeminhas,são muito interessantes, bons de ler.

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  3. Pouca vezes li haicais, os de Abel Pereira nunca li, mas os seus são maravilhosos.
    Sônia Martha

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  4. Muitos bons esses seu haicais,gostei...

    Carlos Borges

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  5. ARTE E SABEDORIA

    A arte bonsai
    sintetizando versos
    em um poema haicai.

    Gostei muito desse tipo de poema! Parabéns pelos versos!

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  6. A contração cairia bem melhor no início do terceiro verso. Porém, como não conhecia esse estilo de poesia, perdi-me na conta silábica.

    Desculpe-me!

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  7. Adorei os seus haicais. Parabéns!
    Gracy Luna

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  8. Adorei os seus haicais. Parabéns!
    Gracy Nunes

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  9. Você é bom em tudo que escreve, nesse poema sintético também demonstra isso.
    CARMEN SOUSA

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  10. Mui belas suas composições poeta!

    Haicais se tornaram para mim um exercício anti-prolixidade...

    Ao contrário de você, acho que sou muito mais uma versejadora inspirada do que técnica, pois me atraem os versos livres, se bem que um exercício com as normas é sempre um desafio bem vindo!

    Continue nos brindando com seus escritos!

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  11. I live in New Orleans and I appreciate this branch of poetry. I want to be your reader.
    Hanna Longfield

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  12. Gostei muito e compartilhei com amigos do facebook.abraço!

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  13. Publique mais haicais de sua autoria, eles são lindos!
    Marianna Lins

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