HAICAI: POESIA EM SÍNTESE
Acho que sou muito mais um versejador técnico do que um poeta inspirado. Por isso mesmo, durante todo o meu tempo de exercício na arte de versejar, priorizei três tipos de composições poemáticas que estão sujeitas à observância de normas de versificação: o soneto, a quadrinha e o haicai, exercendo este último um fascínio especial sobre mim.
O haicai, forma de expressão poética tipicamente japonesa, teve como cultivador mais conhecido no mundo Matsuo Bashô (1646-1694), que codificou e instituiu os modelos normativos desse que é o mais sintético tipo de poema, por meio do qual busca o poeta registrar um quadro da natureza, um acontecimento, uma impressão, de maneira extremamente resumida e com sentido completo.
No Brasil, antes e durante a época do Movimento Modernista, Afrânio Peixoto fez-se grande defensor da nacionalização do haicai. Mas o primeiro a publicar haicais neste país foi Luiz Aranha, ao entremear alguns deles em seu livro Poema Giratório.
Entre outros cultivadores do haicai, que iniciaram ainda na primeira metade do século passado, citam-se Guilherme de Almeida, Valdemiro Siqueira Jr., Gil Nunesmaia, Oldegar Vieira, Osório Dutra e Abel Pereira.
Na contemporaneidade, cabe ressaltar o esforço dos poetas sintetistas Haroldo Campos, Augusto Campos e Décio Pignatari em traduzir ou transcrever para o nosso idioma o tradicional haicai japonês. Assim também, não se pode deixar de mencionar outros poetas que se dedicaram ao haicai liberado das amarras normativas, a exemplo de Milôr Fernandes, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Olga Savari e Sérgio Marinho.
ABEL ME DESPERTOU O GOSTO PELO HAICAI
Cultivo o tipo de haicai mais clássico, no molde adotado por Guilherme de Almeida: com título, rimado, desenvolvido em três versos, sendo o 1º e 3º de cinco sílabas e o do meio, de sete sílabas.
Sem nenhuma dúvida, o que me despertou o gosto pelo haicai foi a leitura do livro Colheita do poeta baiano Abel Pereira (1908-2006), que passei a considerar o mestre do haicai brasileiro, graças à sua inimitável capacidade de síntese e à sua aprimorada técnica de composição. De Abel, tive mais tarde a oportunidade de ler Poesia até Ontem, Mármore Partido e Haicais Vagaluminosos. É a linha dele que venho seguindo até hoje. E confesso que, na empolgação com o que pude haurir desse grande poeta, cheguei a parafraseá-lo (sem plagiar) algumas vezes, como nestes exemplos:
“Com tamanho zelo / bem vês como o japonês / soube concebê-lo”. (Abel Pereira)
Com tal perfeição, / haicais não encontro iguais / no próprio Japão. (Kleber Lago)
“Motivos diversos. A nossa alma. O que possa / dizer-se em três versos”. (Abel Pereira)
Somente em três versos, / de repente vai a gente / criando universos. (Kleber Lago)
UMA PEQUENA MOSTRA DOS MEUS HAICAIS
ÓDIO
Semente ruim
que, por enquanto, não planto
cá no meu jardim.
CULTO
Num rito perfeito,
noite e dia adoro Lia
no altar do meu peito.
FUMAR
Prazer de momento,
que passa, quando a fumaça
se desfaz no vento.
TRAIÇÃO
De repente, ataca
a mão fria e nos enfia
nas costas a faca.
LEMBRANÇA
Retrato pintado
com zelo na mente pelo
pincel do passado
DECORAÇÃO
É com mágoa e dor
que enfeito o leito desfeito
desse nosso amor.
ESPERANÇA
Verde amarelado
que ponho ainda no sonho
de ter-te a meu lado.
CAUSA E EFEITO
Um simples bom-dia
de você, como se vê
me causa alegria.
PODER
Razão para alguém
dizer e, às vezes, fazer
o que não convém.
INIBIÇÃO
De repente, míngua
a ideia e, ante a plateia,
silencia a língua.
DETERMINAÇÃO
Buscar por espaços
na vida, sem temer lida
e sem poupar passos.
ASSASSINATO
Aos golpes da serra,
eis que tomba o velho ipê,
e a vida se encerra.
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MENSAGEM MATINAL
No dia que nasce,
preciso ver um sorriso
a luzir-te a face.
POENTE
Ninguém foge à sorte
de andar tanto e terminar
nos braços da morte.
SACRIFÍCIO
As duras pelejas
para ter como atender
a tudo que almejas.
DESILUDIDO
A esmo no mar,
descrente vaga e pressente
que não vai voltar.
DE REPENTE
Morreu, mas só vai
saber da morte ao se ver
diante do Pai.
CANOEIRO
Movendo a canoa,
rema a rima do poema
que declama a proa.
APAIXONADO
Em mar agitado,
cego à razão, eu navego
num barco furado.
DESENCANTO
O forte amargor
de absinto que hoje sinto
nesse nosso amor.
DESCASO
Por mero capricho,
Lia pôs minha poesia
no cesto de lixo.
FELIZ
Rumo ao meu poente,
torno a vida bem vivida
e caminho em frente.
PIPA
Flutua e balança
na fina linha e fascina
o olhar da criança.
FRAQUEZA
Motivo por que
eu tento ainda um momento
de amor com você.
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VORACIDADE
Como um predador
voraz, pegas quem atrais
e matas der amor.
MEARIM
Ninguém o socorre
no leito já raso e estreito
onde aos poucos morre.
PEDREIRAS
Fonte predileta
de poesia, onde sacia
a sede o poeta.
INDIFERENÇA
Um governo ausente
e alheio à dor que há no meio
dessa pobre gente.
MEDO
Eu temo os sem-terra
quando os vejo se agrupando
em campos de guerra.
QUASE MULHER
A maravilhosa
transmutação do botão
que se torna rosa.
INCOERÊNCIA
Se nunca me assumes,
nem sendo poeta, entendo
esses teus ciúmes.
CONFIRMAÇÃO
Que meus atos provem
que envelheço, mas pareço
comigo ainda jovem.
GOLADA
Lá era mostrado
que sexo tinha nexo
com vício e pecado.
NA POESIA
O sublime alcança
João Barrêto, em seu soneto
Pálida Lembrança.
MARCAS
As rugas do rosto
na verdade são da idade,
e não de desgosto.
(Kleber Lago – Um Pouco de Cada Momento / Quadras para os Setenta, Haicais e Trovas Soltas / Haicais)
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A mostra acima é dedicada a todos os simpatizantes do haicai. Quero, porém, encerrar esta postagem com os que escrevi, ao tomar ciência da morte material de Abel Pereira, próximo de completar os seus 98 anos de vida terrena E os publico, como homenagem, in memoriam, ao saudoso poeta ilheense, em cuja poesia aprendi a envolver-me e a fascinar-me, no exercício de testar o meu poder de síntese, parafraseando-o ou criando, mas sem deixar de seguir os seus rastros nesta arte, em relação a qual não se pode negar-lhe primazia no Brasil.
PARTIDA
O mestre de Ilhéus,
subindo num voo lindo,
partiu para os céus.
INSUBSTITUÍVEL
Não teremos mais
ninguém, aqui, que tão bem
se expresse em haicais.
VAZIO
Eu lamento quanto
vazia fica a poesia
de síntese e encanto.
Abel Pereira mudou-se para a Morada Eterna em 21 de maio de 2006. No dia a dia celestial, eu só posso imaginá-lo ocupado em seu prazeroso ofício. E o vejo sentado, pena em riste, sintetizando peças e peças de cânticos, para que os anjos prestem louvores poéticos a Deus, sob forma de haicai.
Kleber Lago
Bonitos esses minúsculos poemas. Precisa ser craque para dizer muito com poucas palavras...
ResponderExcluirMario Sanches
Gostei desses poeminhas,são muito interessantes, bons de ler.
ResponderExcluirPouca vezes li haicais, os de Abel Pereira nunca li, mas os seus são maravilhosos.
ResponderExcluirSônia Martha
Muitos bons esses seu haicais,gostei...
ResponderExcluirCarlos Borges
ARTE E SABEDORIA
ResponderExcluirA arte bonsai
sintetizando versos
em um poema haicai.
Gostei muito desse tipo de poema! Parabéns pelos versos!
A contração cairia bem melhor no início do terceiro verso. Porém, como não conhecia esse estilo de poesia, perdi-me na conta silábica.
ResponderExcluirDesculpe-me!
Adorei os seus haicais. Parabéns!
ResponderExcluirGracy Luna
Adorei os seus haicais. Parabéns!
ResponderExcluirGracy Nunes
Você é bom em tudo que escreve, nesse poema sintético também demonstra isso.
ResponderExcluirCARMEN SOUSA
Mui belas suas composições poeta!
ResponderExcluirHaicais se tornaram para mim um exercício anti-prolixidade...
Ao contrário de você, acho que sou muito mais uma versejadora inspirada do que técnica, pois me atraem os versos livres, se bem que um exercício com as normas é sempre um desafio bem vindo!
Continue nos brindando com seus escritos!
I live in New Orleans and I appreciate this branch of poetry. I want to be your reader.
ResponderExcluirHanna Longfield
Gostei muito e compartilhei com amigos do facebook.abraço!
ResponderExcluirPublique mais haicais de sua autoria, eles são lindos!
ResponderExcluirMarianna Lins