Com o livro Menções, Cantos e Louvores (2011) encerrei o projeto editorial, que teve objetivo de publicar o que desenvolvi em versos sobre temas inerentes a Pedreiras, seu rio e sua gente.
O projeto se iniciou em 2006, com o lançamento do livreto Da Cidade e do Rio, a que seguiram Água e Pedra (2008), Tempo e Distância (2008) e Da Cidade, da Pedra e do Rio (2009), cujos conteúdos se juntaram a novos poemas para formar Menções, Cantos e Louvores, onde os poemas laudatórios e os cantares dos encantos de minha terra natal estão entremeados por composições narrativas de situações e fatos pitorescos, a exemplo das três peças que mostro nesta postagem.
TROCA ENTRE CASAIS
Visito o anedotário da cidade
E logo encontro um fato assaz jocoso,
Mas não sei se se trata de verdade
Ou de simples estória de trancoso.
O caso envolve alguém que era afetado
Por lances momentâneos de loucura
E que, por alguns meses, no passado,
Em Pedreiras esteve como cura.
Certo domingo, após os rituais
Da missa da manhã, chega o momento
De unir em matrimônio dois casais
Habilitados para o sacramento.
O padre chama os dois casais, e quando
Os mesmos se aproximam, franze a fronte,
Torna-se enrubescido, demonstrando
Notar que ali há algo destoante.
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Num casal, noivo negro e noiva clara,
Já no outro casal, isso ao contrário.
O “estranho” quadro que se lhe depara
Desequilibra a mente do vigário.
Quando os nubentes dele ficam perto,
Fala baixinho: – Eu quero lhes ser franco,
Na minha igreja tudo é muito certo,
E não vou misturar negro com branco.
O sacerdote simplesmente faz
O que lhe dita a mente no momento,
Permutando os rapazes dos casais,
Para, então, celebrar o casamento.
Ofício consumado, nem se toca
Com o que diz para os recém-casados:
– Lá fora, podem desfazer a troca
Caso inda estejam nisso interessados.
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(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)
Mesmo sem ter Pedro Flor
o sentido da visão,
operava com primor
o seu fole de botão.
Ele não se colocava
entre os cegos desvalidos,
pois quase tudo enxergava
por meio de outros sentidos.
Sabia, ao cheirar-lhe a testa,
quem era uma rapariga
do Biano, da Floresta,
da Golada ou da Formiga.
Pela voz reconhecia,
com muita facilidade,
até quem não se incluía
no seu grupo de amizade.
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Relativamente ao tato,
a agudez desse sentido
quero demonstrar num fato
comigo mesmo ocorrido.
Já quatro anos distante,
eu, de retorno à cidade,
fui tomado num instante
por uma forte vontade.
Quase sem ter percebido,
já estava na Golada,
ouvindo o som conhecido
da sanfoninha afinada.
Quando cheguei ao local,
parei à porta de entrada
e de lá fiz um sinal
para ninguém dizer nada.
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No recinto só entrei
depois de calar-se o fole,
consoante a velha lei
da parada para um gole.
E, tendo ali adentrado,
eu, de modo sorrateiro,
pus-me quieto e calado
diante do sanfoneiro.
Então, Antônio José
perguntou-lhe de repente:
– Será que sabes quem é
que se faz aqui presente?
Pedro pôs-se a tatear
meu braço com certo afago,
e gritou: – Quero cegar
se não for o Kleber Lago!
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(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)
FALTA DE PREFEITO
Como primeiro prefeito
Da fase pós-ditadura,
Tinha assumido o garboso
Zé Lago, que fora eleito
Numa disputa bem dura
Contra o Hamilton Raposo.
O promotor da comarca,
Aderson, irmão mais novo
De meu pai, Zé e Benu,
Trazia no rosto a marca,
Segundo dizia o povo,
De sério como zebu.
Tendo sido a Trizidela
Tomada por uma enchente,
O povo desalojado
De suas casas naquela
Parte mais pobre e carente,
Estava nesta abrigado.
Aqui, um “Deus nos acode”...
Por todo canto era bicho:
Cachorro, peru, capão,
Cavalo, jumento, bode
E porco fuçando o lixo
Espalhado pelo chão.
É que, por ato formal
Do prefeito da cidade,
Foi suspensa a correição.
Assim, qualquer animal
Podia andar à vontade
E livre do Martinzão.
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Num galope acelerado,
Eis que passa pela rua
Uma pequena jumenta.
E, atrás, um jegue excitado,
Rinchando e exibindo a sua
Gigantesca ferramenta.
Quem por lá passando vinha
Bem pôde assistir àquilo.
Mas, nem de longe, supor
Que a medrosa jumentinha
Iria buscar asilo
Na casa do promotor.
Encontrando a porta aberta,
Ela invadiu a morada
E arrastou o jegue atrás.
Num minuto, a descoberta
De que ali, encurralada,
Não podia fugir mais.
Por instinto, o animal
Macho, em sua força imensa,
Subiu-lhe às costas com sanha
E deu curso ao ritual,
Sem respeitar a presença
Da casta Dona Saldanha.
A jumentinha, coitada,
Submissa ao sofrimento,
Gemia baixo e curvava
O dorso a cada estocada
Que lhe aplicava o jumento
Com a dura e grande clava.
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O jegue, finda a missão,
Desceu de sobre a parceira,
Membro ainda um pouco rijo,
A derramar pelo chão
Uma gosmenta porqueira
Composta de esperma e mijo.
Dona, muito indignada
Com o que acabara de ver
Naquela cena medonha,
Não conseguia mais nada
Pronunciar, a não ser:
– Oh! Que falta de vergonha!
Aderson, que então dormia,
Acordou com tais lamentos...
Chegou à sala na hora
Em que já o Cascaria,
Empurrando os dois jumentos,
Tentava pô-los pra fora.
Em face do rebuliço
E sem se lembrar do irmão,
Corrigiu Dona, a seu jeito:
– A falta que existe nisso
Não é de vergonha, não.
É falta, sim, de prefeito!
(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)
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Agradeço o prestígio que os leitores têm dispensado a este blog. Até a próxima postagem.
Kleber Lago
O exímio sonetista, o versejador lírico extraordinário é também excelente na arte de expressar em versos esses quadros hilariantes da vida de sua terra.
ResponderExcluirMÁXIMO FIGUEIRA
Já sou "viciado" no seu blog, você é bom demais, poeta.
ResponderExcluirCarlos Borges
Quem já leu os sonetos e outros belos poemas desse poeta sabe que ele prima pelo bom uso da lingua. Admirável é que ele não baixa o nível de linguagem nem quando conta casos engraçados, como em "Falta de Prefeito".
ResponderExcluirProfª Rita
LEITORA EU JÁ SOU... SÓ ME FALTA ADQUIRIR OS LIVROS!!!
ResponderExcluirCÁLIDA PESSOA
Quando for a Pedreiras, vou levar-lhe exemplares de alguns.
ExcluirAh se os prefeitos tivessem a firmeza e determinação daquele jumento e o ótimo tato do artista cego para gerir a coisa pública! Não teríamos poetas desse naipe no degredo literário. Parabéns Kleber Lago pelo belo desenvolvimento dos textos e, como disse a professora Rita: "ele não baixa o nível da linguagem".
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