No dia 21 deste mês, terça-feira de carnaval, fará setenta anos que cheguei a Pedreiras, no período carnavalesco, “pendurado no bico de uma cegonha” meio boêmia e romântica que ali me deixou para que eu começasse a cumprir minha jornada terrena. Foi lá que vivi minha infância, minha adolescência e parte de minha juventude. E foi lá que aprendi a viver para mim e para os outros...
Em meados do ano passado, parei num desses meus momentos de reflexão para pensar em mim, em minha vida, no que fiz, no que deixei de fazer, no que espero para os anos que ainda terei para frente... Nesse encontro comigo mesmo, concluí que, em matéria de satisfação pessoal, eu me encontrava quase na plenitude, por ter cumprido a maior parte da missão, do jeito que eu entendia correto, norteando os meus passos nos princípios da humildade, da fraternidade, da liberdade, do respeito aos demais, do amor aos meus semelhantes e da boa convivência em sociedade. Sem abandonar a força desses princípios, fiz o que sempre quis fazer. E as prováveis reprovações a algumas de minhas atitudes na juventude não afetaram em nada o meu relacionamento com as outras pessoas, ou eu não chegaria até aqui, sem inimigos, e envaidecido com as manifestações de admiração e carinho que cotidianamente recebo de minha terra natal e de diferentes partes deste país, vindas de gente que me conheceu pessoalmente, de gente que só me conhece no ambiente virtual ou de gente que só sabe de mim pela leitura das bobagens que venho escrevendo e publicando ao longo desses anos.
Em decorrência dessa reflexão, escrevi, alta madrugada, as Quadras para os Setenta, que publiquei num livreto juntamente com outros poemas e que agora ponho no blog, com a declaração de que alcanço essa idade exageradamente feliz e com a certeza de que meus amigos ainda “vão ter de me engolir”, feliz assim, por muito tempo.
QUADRAS PARA OS SETENTA
(ou A Imotalidade do Poeta)
(ou A Imotalidade do Poeta)
21 de fevereiro,
um dia aos outros igual,
mas, de peixes, o terceiro
no mapa zodiacal.
Esta palavra terceiro,
que em minha vida se acama,
já vem de antes do cueiro,
chega aos tempos do pijama.
Dos filhos de meus pais, eu
fui o terceiro, e é verdade
que o meu terceiro nasceu
na minha terceira idade.
Nada é pouco nem demais.
Sejamos homem ou mulher,
o mundo a gente é que faz
do jeito que a gente quer.
Não fiz o meu, mas vivi
sempre no terceiro mundo,
e o sempre viver aqui
deu-me um orgulho profundo.
Na verdade, não me ligo
a nada de astrologia,
exceto quando consigo
encontrar nisso poesia.
E havendo ou não influência
do signo sobre as pessoas,
peixes, por coincidência,
só me trouxe coisas boas.
Trouxe-me aonde eu queria,
se escolhesse, ter nascido;
e em nenhuma fantasia
me deixou ficar perdido.
Sem um formal compromisso,
deu-me mais do que mereço,
e não vou pagar por isso
nada mais que o justo preço.
Vivendo entre o bem e o mal,
provando o doce e o fel,
pude aos outros mostrar qual
meu verdadeiro papel.
Ante pais equilibrados,
bons irmãos e bons amigos,
cometi doces pecados,
sem repressão ou castigos.
Amei muito, fui amado,
e se alguém fiz infeliz,
tão logo fui perdoado,
porque isso eu nunca quis.
Já vou completar setenta,
e cansado que eu me sinta,
sei que a vida ainda aguenta
mais uns vinte ou mais uns trinta.
No próximo aniversário,
direi que tudo me faz
ver-me um septuagenário
com a alma de rapaz.
Um rapaz meio boêmio
que fuma, bebe cerveja
e só espera por prêmio
que a vida assim sempre seja.
Um moço forte e afoito,
tal como ou touro atrevido
que, quando é hora do coito,
não tem falta de libido.
Jovem que afirma e sustenta
que nele a vida não morre
| e quer festejar noventa
tomando um gostoso porre.
O que são setenta anos?
Um tempo curto, é verdade,
mas no qual alguns humanos
vivem uma eternidade.
A vida tenho vivido
sem notar que o tempo passa,
pois que tenho recebido
a cada instante uma graça.
A maior graça é viver
desejando ter mais vida,
e a cada dia dizer
que há missão a ser cumprida.
Outra é abraçar gente nova
e, mesmo já em declive,
sentir, nos abraços, prova
de que a existência revive.
Se a vida tem seus mistérios,
eu neles bem pouco penso,
pois tratar de assuntos sérios
às vezes me deixa tenso.
Gosto é de sentir-me leve
a flutuar na alegria,
em que cada instante breve
se eternize na poesia.
Poeta a vida me fez,
desde jovem eu já sabia,
porém confesso a vocês
que a vida é minha poesia.
Temores não me consomem,
nem o da morte me afeta:
posso morrer como homem,
mas nunca como poeta.
Isso é veraz. Entretanto,
Deus que me deu os setenta,
se me der mais, eu garanto
chegar bem duro aos noventa.
Embora nunca me farte
de fazer os meus sermões,
do que falo grande parte
são meras divagações.
Se durante a vida fiz
tão intenso cada instante,
aos setenta, estar feliz
já me seria bastante.
E o bastante bastaria,
se ao receber o meu passe
para a outra, de alegria
muito ainda não faltasse.
Sim, porque me falta ver
o fim das bolsas-esmola
e toda criança ter
livre acesso à boa escola.
Falta-me ver do trabalho
tirar o trabalhador
o alimento e o agasalho,
sem precisar de favor.
Falta-me ver as pessoas
convivendo como iguais,
sendo, para todos, boas
as condições sociais.
Falta-me ver os tiranos
jogados todos nos chão,
e a paz juntando os humanos
que lutam, por ambição.
| Falta que eu viva até quando
guerras não existam mais,
com toda a Terra falando
a mesma língua de paz.
O que já vivi foi pouco
para fazer-me entender
por que neste mundo louco
o ter vale mais que o ser.
Então, desvalorizada
minha vida se tornou,
porquanto, não tendo nada,
resta-me só o que sou.
Mas sou alguém que acredita
que um dia ainda se há de
ver toda a insânia proscrita
do seio da humanidade.
No aniversário que vem
que Deus me dê de presente
boa saúde e também
alguns anos para frente.
E espero ser atendido,
não pra viver por viver,
pois não faria sentido
nem me daria prazer.
Eu quero é rever conceitos,
tomar novas atitudes,
sepultar certos defeitos
e ressuscitar virtudes.
Discutir com os amigos
de mais distintas idades,
dando aos preceitos antigos
o tom de novas verdades.
Esperar que, a cada passo
do tempo que eu for vivendo,
eu possa ver um pedaço
do que não vi ocorrendo.
Por não ser muito exigente,
talvez até que me agrade
se acontecer tão-somente,
do que não vi, a metade.
Se assim for, não chorarei,
caso o bônus Deus me corte,
para que se cumpra a lei
que regula a vida e a morte.
Ninguém de mim tenha dó,
que a vida me foi dileta.
O pó voltará ao pó,
mas ficará o poeta.
Se semeio com cuidado
minhas poética leiras,
da safra tenho doado
a maior parte a Pedreiras.
Sei separar os dois entes
que fazem parte de mim
e que sendo diferentes,
não deixo juntos, enfim.
Por isso tenho afirmado
a todos que, quando lá
o homem for sepultado
o poeta não será.
Já lhe deram garantia
de uma existência imortal
no seio da Academia
de sua terra natal.
LAGO, Kleber. Quadras para os Setenta, Haicais e Trovas Soltas. São Luís: KCL, 2011.
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Não me desejem riqueza material! O que quero é encher o meu coração de boas e grandes amizades. Esse será o meu tesouro.
Kleber Lago
Você não vai viver só noventa, não. Poeta como você não morre nunca.
ResponderExcluirCarlos Borges
Maravilha! Cada vez que leio um poema seu, sinto um nova emoção,
ResponderExcluirporque você usa o verso com mestria e tem uma forma singular de expressar seus sentimentos.
Sônia Martha
Esse eu não conhecia. Um poema singelo, bem escrito, a trazer uma mensagem significativa, principalmente para nós que já vivemos um bom tempo e queremos viver um pouco mais. Parabéns! Seria repetitivo reiterar que você sabe dizer as coisas com propriedade.
ResponderExcluirMÁXIMO FIGUEIRA
Belíssimas quadras formando um cojunto maravilhoso!
ResponderExcluirMaysa Lima
Eis um caso em que o rigor aplicado na construção dos versos, quanto a métrica, rima e uniformidade, não prejudica a liberdade do dizer nem a leveza e a beleza da mensagem poética.
ResponderExcluirProfª Rita
Você só não me surpreende porque tenho lido muito do que escreve. Parabéns, poeta.
ResponderExcluirJonas Almeida (SLZ)
Quadras que mostram fielmente sua maneira de ser e viver. E nos permitem refletir sobre a nossa existência e missão na terra
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