domingo, 4 de dezembro de 2011

JARDELINA (de Os Loucos de Minha Terra)

KLEBER LAGO

Os Loucos de Minha Terra é um poema que escrevi com a intenção única de resgatar a história de seres humanos que se folclorizaram, mostrando, pelas ruas de Pedreiras, uma realidade em que apenas poetas e médicos costumam penetrar: os poetas, pela poesia que enxergam no modo de ser e agir dessas pessoas; os médicos, na busca por compreender como e por que os comportamentos delas se chocam com os daquelas outras pessoas que, no mesmo ambiente social de convivência, são consideradas normais.
O poema se fez livro, com tiragem de apenas mil exemplares. Confesso que eu não esperava o sucesso alcançado por esse despretensioso trabalho que veio a se tornar objeto de monografias e artigos, despertando, ainda, o interesse de profissionais das áreas de Psicologia e Psiquiatria. Dessa forma, para melhor atender às demandas, reeditei o poema, graficamente condensado, primeiro no livro Da Cidade da Pedra e do Rio e depois em Menções, Cantos e Louvores, ambos também de tiragem limitada, em face de serem os meus livros confeccionados de forma semiartesanal, sem requintes gráficos e a baixo custo de produção, para que eu possa distribuí-los gratuitamente a quem se interesse em lê-los.
                   Sei que muitas pessoas não tiveram acesso a esses livros. Assim, resolvi servir-me do blog para mostrar alguns capítulos de Os Loucos de Minha Terra, começando com Jardelina, uma das personagens do poema, e cuja história de vida e “loucura”, a exemplo das demais, tem tudo a ver com sentimento e poesia.

                                  IX - JARDELINA

Dentro do Bairro Paris,
de frente para a matriz,
ficava a casa do Gírio,
em cujo jardim nascia
uma flor que parecia
um mimoso e branco lírio.

No pequeno prédio ao lado,
em ruína, abandonado,
se alojara a Jardelina,
maluca do tipo jeca,
que tratava uma boneca
como se fosse menina.

De manhã cedo, colhia
três das flores e fazia
um pouco de água-de-cheiro.
Banhava a boneca e, então,
com um trapo de fustão,
lhe improvisava um cueiro.

Depois a punha deitada,
muito bem agasalhada,
no chão, num canto da sala.
E, de maneira tão bela,
alisava a fronte dela,
como uma mãe, a mimá-la.

Quando a “criança” dormia,
Jardelina, à luz do dia,
após lavar o vestido,
despida completamente,
chegava ao muro de frente,
onde o deixava estendido.

Enquanto a roupa secava,
nua ao sol, ela esperava,
andando entre a casa e o muro,
na inconsciente inocência
que mostrava, em transparência,
o seu espírito puro.

Dos bens, todos os que tinha
cabiam numa trouxinha.
Porém, vazia a barriga
não ficava, pois comida
farta lhe era servida
pela vizinhança amiga.
Viveu na velha morada
até ser desabrigada,
ao vir a demolição.
E lá se foi Jardelina,
com sua trouxa e a “menina”,
para a Rua Oscar Galvão.

Num terreno não murado,
já pelo mato tomado,
encontrou seu novo lar:
um resto de casa, aberto,
quase todo descoberto
e a ponto de desabar.

Lá também, cada vizinho
lhe dava pão e carinho,
sem ficar aborrecido
quando ela, nua e serena,
repetia aquela cena
da secagem do vestido.

Jardelina foi embora,
ninguém soube o dia e a hora...
Se dela ficou saudade,
não vi, em nenhum momento.,
a cor de tal sentimento
presente em nossa cidade.

Na verdade, me parece
que, nem mesmo numa prece,
uma palavra se diz
por aquela pobre alma
que escondia em tanta calma
o quanto fora infeliz.

Eu próprio posso dizer
que só hoje vim saber
que ficou louca a coitada,
quando vivia na roça,
e o fogo em sua palhoça
matou-lhe a filha, queimada.

E, por isso, Jardelina
mantinha viva a menina
na figura da boneca,
uma prova tão segura
de que nem mesmo a loucura
os sentimentos nos seca.
                           LAGO, Kleber Cantanhede. Os Loucos de Minha Terra. São Luís: KCL, 2007)


Obrigado pela atenção. Obrigado pelo prestígio que têm dado a este blog, refletido na quantidade de visitas de leitores do Brasil e do exterior, demonstração inequívoca de que também a literatura produzida em Pedreiras-Maranhão-Brasil tem o poder de ultrapassar fronteiras para universalizar-se.
                                                                                            Kleber Lago

14 comentários:

  1. Caro Kleber,
    Já li o poema inteiro várias vezes. Os Loucos de Minha Terra é expressão da arte poética, onde a simplicidade do dizer se sublima, a narrar de maneira suave e bonita histórias como as de "Jardelina", "Beta", "Faustino" e de outros. Para mim, sua obra-prima.
    MÁXIMO FIGUEIRA

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  2. Adorei! Lindo! Toca a alma da gente...
    Gracy Luna

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  3. Gosto muito do poema, pela riqueza de poesia que ele expressa, deixando um peso e leveza na alma do leitor.

    Samuel Barrêto

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  4. Parabéns pelo poema companheiro Kleber Lago, quanta destreza em retratar estes momentos do passado.Foi um grande prazer ouvir os conselhos,conversas,lorotas e piadas no derradeiro dia de festejo...Um grande abraço!!!

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  5. A própria pronuncia, Jardelina, soa uma grande poesia. Agora, a escrita em si, desce tão macia que nem uma boa cachaça, sem queimar a garganta e ainda nos faz desejar mais uma dose.

    Que maravilha... Essa poesia, assim como a boneca de Jardelina nunca há de morrer.

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  6. Ainda não li o livro, mas pela mostra já imagino como ele é.
    Sônia Martha

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  7. Queria poder ler tudo que você escreve... Esse poema Jardelina tem muita beleza poética... Você é o "cara"!
    Carlos Borges

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  8. Lembro-me de que chorei de emoção na primeira vez que li este poema. A figura de Jardelina representa a pureza de uma alma sofrida e calejada pelos infortúnios da vida.
    Existem muitas Jardelinas nesse mundo, pessoas que guardam para si suas tristezas e morrem sem ser percebidas!
    Cláudia Arôso

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  9. Seu Kleber, que coisa linda essa poesia, me comoveu.
    FÁBIA CARVALHO

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  10. O pouco que conheço do Sr não imaginava que era um poeta nato, fiquei muito emocionada com o poema muito lindo, estás de parabéns.

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  11. Kleber,
    Eu só havia lido de você o livreto Quadras para os Setenta, Haikais e Trovas Soltas,no exemplar que me fora oferecido. Agora tive oportunidade de ler o seu blog. Passei-o todo, e o que me resta é a admiração ao grande poeta que você é.
    Profª Rita

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  12. Estou visitando o blog pela primeira vez. Você é bom no soneto, no haicai, em qualquer tipo de poema. Esse Jardelina é o máximo, mexe com as almas sensíveis à beleza da poesia.
    Mateus (de Salvador-BA)

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  13. Já li muita coisa sua que gostei, mas confesso que esse texto me roubou um fascínio especial.. pela escrita, e pela própria loucura que é algo que me fascina .
    Um abraço seu Kleber!

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  14. OI Kleber tudo bem?
    Como faço para conseguir "OS LOUCOS DA MINHA TERRA"? Sou de Pedreiras.
    MARIA LUIZA MARTINS (MAIZA)
    Um grande abraço

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