Por CLÁUDIA ARÔSO
Ao se relacionar o nome Kleber Lago à poesia, logo vem à mente a idéia do sonetista disciplinado, do versejador ortodoxo que segue rigorosamente as regras de versificação e que pouco se serve dos permissivos gramaticais à linguagem poética. Mas eu, que conheço bem o seu trabalho e faço viagens constantes à sua obra, sei que não é assim.
É verdade que, no prefácio do livro Sonetos que não estão no Caderno, fiz referência a características que facilmente se encontram nos sonetos e em muitos outros poemas de Kleber, a exemplo de simplicidade de expressão, bom emprego da língua, uniformidade métrica dos versos e ausência de rimas imperfeitas ou assonantes. Isso, contudo, não significa que ele não faça uso de versos brancos e livres das amarras normativas. Só que o faz, imprimindo certa cadência que empresta musicalidade aos versos, tornando a leitura suave e agradável, como se pode observar nos textos abaixo, selecionados de seus livros Palavras e Outros Poemas, Um Pouco de Cada Momento e Tempo e Distância.
PALAVRAS | |
Nos corações em que busquei amor ódio encontrei, as mãos de que esperei carinhos maus-tratos me deram, os sábios a quem pedi verdades mentiras me ensinaram. | Tenho o coração cheio de amor para quem me odiou, as mãos cheias de carinhos para quem me maltratou e a alma cheia de verdades para quem me ensinou mentiras. |
O RIO DE MINHA TERRA | |
Passa um rio pela terra De quase todo poeta... Minha terra também tem um rio Que passa e deixa lembranças, Que passa e deixa saudades, Que me inunda de amor Pela minha terra Toda vez que em seu manso passar | Molha-me o corpo e a alma. Se o simples passar de um rio Pela terra de um poeta É poesia, Que nome devo dar A um rio passando Pela minha terra E pela minha vida? |
BORDADEIRA | SAPATEIRO |
No universo mágico De linhas e bastidores Seu trabalho revela A artista genial Que existe dentro dela. A agulha em sua mão Vira condão de fada E faz surgir no tecido Pedaços de fantasia Sob a forma de bordado. | Na lide cotidiana do interior da oficina, quase sempre indiferente ao movimento das ruas, esse operário trabalha a sola crua e a pelica, preparando proteções para os pés que dinamizam o vaivém da vida. |
REGRESSO | |
Não me pergunte por que fugi de novo. Não me pergunte aonde fui, por que voltei nem o que fiz pelos caminhos de ida e volta. Não me diga que minha ausência provocou saudades, também não fale que lhe fiz falta | enquanto estive fora; pense apenas que voltei para ficar. Aperte-me contra o peito com ternura, sem cobrança, e deixe entrar mais uma vez em sua vida o homem que a ama e cujo tempo de fuga terminou. |
COMPROMISSO | AVÔ |
Eu sei, Senhor, Que minha vida Será curta ou longa De acordo com a tua vontade. Mas como deixei de realizar Uma porção de coisas, Eu te peço que me segures Um pouco mais por aqui. Quando eu subir, Pagarei com juros e correção O tempo excedente Que me concederes. | Levo para a terceira idade A mesma consciência Com que vivi Minhas outras idades. E enquanto minhas filhas Não me dão netos Vou brincando de avô Com os cachorros Que elas criam. |
PERDIDO | |
Uma espécie de conformismo abafou meus sonhos, silenciou meus protestos, desarticulou minhas lutas, matou meu senso de fraternidade, soterrou meu amor-próprio. Estou perdido de mim mesmo! Não posso reconhecer-me | nessa forma absurda em que me vejo: distante de minha alma, surdo aos apelos alheios, insensível a meus próprios apelos. Desejo reencontrar-me, mas não sei, ninguém me diz onde foi que me perdi. |
INEVIDÊNCIA | MUDANÇAS |
O poeta evita o óbvio Para não vulgarizar o verso. Poesia não exige evidência De causa e conseqüência. Precisa apenas de idéia, Mas a idéia tornada verbo Pode, às vezes, parecer Sem vislumbre de sentido, Porque o poeta exprime Questões substantivas Com tanta abstração Que a mensagem só alcança As almas mais sensíveis, Capazes de entender O inevidente. | Fechei as portas da vida Para as chatices do cotidiano E joguei as chaves fora. Tenho agora na cabeça Apenas sentimentos leves E um chapéu de palha. No ermo da praia, A sonoridade das ondas Purifica meus ouvidos, E a brisa litorânea Enche meu peito De cheiro de mar. Sem os sapatos oprimentes Caminho descalço na areia, Sentindo os pés beijados Pela escuma salgada Que apaga meus rastros... |
SUPOSIÇÃO E CERTEZA | DEPENDÊNCIA |
Militares me perseguem, Meretrizes me consolam. Cada qual no seu papel. Para os “filhos da pátria” Sou um “filho da puta”. Para as meretrizes Sou um “pai” provedor. Eles imaginam que me perseguem Em defesa da mãe. Elas sabem que me consolam Em defesa do pão. | Bem que tentei resistir, Mas a força hipnótica Desse teu feitiço Neutralizou minha resistência. Conseguiste deixar-me A mercê do que querias E, através de teus beijos, Foste inoculando em mim O ópio de teu amor Até me tornares Dependente irrecuperável De ti. |
Para encerrar esta mostra, busquei um trecho do poema Tempo e Distância. Pois este poema, além da beleza que encerra, revela e confirma a força da inspiração e a destreza de um poeta que é capaz de operar uma alternância constante entre textos construídos de versos rimados e metrificados e textos compostos de versos livres, levando o leitor a não perceber ou a quase não perceber a mudança, justamente pelo fato de ele dar aos versos brancos e livres aquela musicalidade a que me referi anteriormente.
TRECHO DO POEMA TEMPO E DISTÂNCIA | |
[...] Minha procura, no entanto, Não vai exigir canseiras. Assim, vou mesclando o canto Que me dispus a compor, De outras nuanças do amor Que dei em voto a Pedreiras. E esse amor forte e sincero Vai justificar (espero) Que eu, carente de talento, Para poder alcançar Bom êxito em meu intento, Tenha colhido, nas lavras Do grande mestre, palavras Que emprego no canto assim: – Em qualquer tempo ou lugar, “Se não” estou “em Pedreiras, Pedreiras” está “em mim”. Entre parênteses, digo Que a poesia de Pedreiras Não está restrita àquilo Que um poeta pode expor Por meio de versos livres Ou sob métrica e rima. | Ela é a poesia do amor Que um filho tem pela mãe. E quem não sabe expressá-la Basta amar para senti-la. ... E vê-la No manso passar do rio Ou no silêncio da pedra Que vela a terra e a vida Que dentro dela acontece; ... E ouvi-la No chilrear dos pardais Em festa ao entardecer, Ou no farfalhar das palmas Agitadas pelo vento; ... E admirá-la No rubor de que se pintam Os morros do lado oeste No instante em que o sol poente Por detrás deles se esconde, Ou num pedaço de céu Onde a ilusão do azul Se mostra mais azul, E o brilho das estrelas Mais brilhante! |
É desse jeito que Kleber se solta das amarras e adeja livremente, espalhando a poesia que ele é capaz de extrair de qualquer coisa material ou de qualquer sentimento motivador. Eu o admiro, porque ele, sujeito a normas ou liberados delas, é sempre bom no que escreve em versos.
Venho notando, nos últimos anos, o quanto Pedreiras tem demonstrado se orgulhar desse seu filho ilustre. E eu, pedreirense apenas por afinidade, sou forçada a dizer que, como qualquer pedreirense nato, também sinto orgulho em fazer parte da vida de um homem simples, responsável, culto, digno, amigo, brincalhão, alegre e sempre de bem com a vida, que hoje é um poeta de reconhecido valor, mas que, do alto de sua humildade, continua a se dizer um simples fazedor de versos, que escreve para ter algo de si a dividir com os outros, sem maiores pretensões
Cláudia Arôso
Muito bom. Lindo ver o poeta ser mostrado por completo na palavra de quem o ama e o conhece muito bem. Lindo mesmo, Cláudia.
ResponderExcluirSônia Martha
Conheço o trabalho poético de Kleber Lago e já tive oportunidade de dizer que ele é um dos melhores poetas que temos. Seus comentários, Cláudia, refletem verdades acerca de quem bem sabe dizer em qualquer forma de compor poemas.
ResponderExcluirRealmente, ele é "preso ou solto, sempre bom".
MÁXIMO FIGUEIRA
Presente n/ blog mais uma vez. Gostei das poesias, dos comentários também.
ResponderExcluirJonas Almeida (SLZ)
Se mantiver essa linha, o blog será sempre um sucesso.
ResponderExcluirCarlos Borges