terça-feira, 24 de abril de 2012

COISAS DE PEDREIRAS

PEDREIRAS-MA(FOTO: Pedras Verdes)

               

Com o livro Menções, Cantos e Louvores (2011) encerrei o projeto editorial, que teve objetivo de publicar o que desenvolvi em versos sobre temas inerentes a Pedreiras, seu rio e sua gente.
O projeto se iniciou em 2006, com o lançamento do livreto Da Cidade e do Rio, a que seguiram Água e Pedra (2008), Tempo e Distância (2008) e Da Cidade, da Pedra e do Rio (2009), cujos conteúdos se juntaram a novos poemas para formar Menções, Cantos e Louvores, onde os poemas laudatórios e os cantares dos encantos de minha terra natal estão entremeados por composições narrativas de situações e fatos pitorescos, a exemplo das três peças que mostro nesta postagem.

                       TROCA ENTRE CASAIS

  


Visito o anedotário da cidade
E logo encontro um fato assaz jocoso,
Mas não sei se se trata de verdade
Ou de simples estória de trancoso.

O caso envolve alguém que era afetado
Por lances momentâneos de loucura
E que, por alguns meses, no passado,
Em Pedreiras esteve como cura.

Certo domingo, após os rituais
Da missa da manhã, chega o momento
De unir em matrimônio dois casais
Habilitados para o sacramento.

O padre chama os dois casais, e quando
Os mesmos se aproximam, franze a fronte,
Torna-se enrubescido, demonstrando
Notar que ali há algo destoante.
Num casal, noivo negro e noiva clara,
Já no outro casal, isso ao contrário.
O “estranho” quadro que se lhe depara
Desequilibra a mente do vigário.

Quando os nubentes dele ficam perto,
Fala baixinho:Eu quero lhes ser franco,
Na minha igreja tudo é muito certo,
E não vou misturar negro com branco.

O sacerdote simplesmente faz
O que lhe dita a mente no momento,
Permutando os rapazes dos casais,
Para, então, celebrar o casamento.

Ofício consumado, nem se toca
Com o que diz para os recém-casados:
– Lá fora, podem desfazer a troca
Caso inda estejam nisso interessados.

(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)


                                  TATO DE CEGO


                


Mesmo sem ter Pedro Flor
o sentido da visão,
operava com primor
o seu fole de botão.

Ele não se colocava
entre os cegos desvalidos,
pois quase tudo enxergava
por meio de outros sentidos.

Sabia, ao cheirar-lhe a testa,
quem era uma rapariga
do Biano, da Floresta,
da Golada ou da Formiga.

Pela voz reconhecia,
com muita facilidade,
até quem não se incluía
no seu grupo de amizade.
Relativamente ao tato,
a agudez desse sentido
quero demonstrar num fato
comigo mesmo ocorrido.

Já quatro anos distante,
eu, de retorno à cidade,
fui tomado num instante
por uma forte vontade.

Quase sem ter percebido,
já estava na Golada,
ouvindo o som conhecido
da sanfoninha afinada.

Quando cheguei ao local,
parei à porta de entrada
e de lá fiz um sinal
para ninguém dizer nada.
No recinto só entrei
depois de calar-se o fole,
consoante a velha lei
da parada para um gole.

E, tendo ali adentrado,
eu, de modo sorrateiro,
pus-me quieto e calado
diante do sanfoneiro.

Então, Antônio José
perguntou-lhe de repente:
– Será que sabes quem é
que se faz aqui presente?

Pedro pôs-se a tatear
meu braço com certo afago,
e gritou: – Quero cegar
se não for o Kleber Lago!

(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)


              FALTA DE PREFEITO


(Imagem: Google)


Como primeiro prefeito
Da fase pós-ditadura,
Tinha assumido o garboso
Zé Lago, que fora eleito
Numa disputa bem dura
Contra o Hamilton Raposo.

O promotor da comarca,
Aderson, irmão mais novo
De meu pai, Zé e Benu,
Trazia no rosto a marca,
Segundo dizia o povo,
De sério como zebu.

Tendo sido a Trizidela
Tomada por uma enchente,
O povo desalojado
De suas casas naquela
Parte mais pobre e carente,
Estava nesta abrigado.

Aqui, um “Deus nos acode”...
Por todo canto era bicho:
Cachorro, peru, capão,
Cavalo, jumento, bode
E porco fuçando o lixo
Espalhado pelo chão.

É que, por ato formal
Do prefeito da cidade,
Foi suspensa a correição.
Assim, qualquer animal
Podia andar à vontade
E livre do Martinzão.
Num galope acelerado,
Eis que passa pela rua
Uma pequena jumenta.
E, atrás, um jegue excitado,
Rinchando e exibindo a sua
Gigantesca ferramenta.

Quem por lá passando vinha
Bem pôde assistir àquilo.
Mas, nem de longe, supor
Que a medrosa jumentinha
Iria buscar asilo
Na casa do promotor.

Encontrando a porta aberta,
Ela invadiu a morada
E arrastou o jegue atrás.
Num minuto, a descoberta
De que ali, encurralada,
Não podia fugir mais.

Por instinto, o animal
Macho, em sua força imensa,
Subiu-lhe às costas com sanha
E deu curso ao ritual,
Sem respeitar a presença
Da casta Dona Saldanha.

A jumentinha, coitada,
Submissa ao sofrimento,
Gemia baixo e curvava
O dorso a cada estocada
Que lhe aplicava o jumento
Com a dura e grande clava. 
O jegue, finda a missão,
Desceu de sobre a parceira,
Membro ainda um pouco rijo,
A derramar pelo chão
Uma gosmenta porqueira
Composta de esperma e mijo.

Dona, muito indignada
Com o que acabara de ver
Naquela cena medonha,
Não conseguia mais nada
Pronunciar, a não ser:
– Oh! Que falta de vergonha!

Aderson, que então dormia,
Acordou com tais lamentos...
Chegou à sala na hora
Em que já o Cascaria,
Empurrando os dois jumentos,
Tentava pô-los pra fora.

Em face do rebuliço
E sem se lembrar do irmão,
Corrigiu Dona, a seu jeito:
– A falta que existe nisso
Não é de vergonha, não.
É falta, sim, de prefeito!  


(LAGO, Kleber. Menções, Cantos e Louvores. São Luís: KCL, 2011)

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                         Agradeço o prestígio que os leitores têm dispensado a este blog. Até a próxima postagem.

                                      Kleber Lago





          

domingo, 1 de abril de 2012

ZÉ DO SACO (de Os Loucos de Minha Terra)

(Prefeitura de Pedreiras-MA  em cuja entrada se alojava Zé do Saco)

Dando continuidade às publicações de Os Loucos de Minha Terra, chegou a vez da postagem sobre Zé do Saco, a mais romântica e quixotesta das figuras folclóricas da vida pedreirense, eleitas personagens do poema-livro. Uma figura humana, cuja “loucura” o levava a fantasiar e a descrever, aos que lhe emprestassem os ouvidos, uma vida de lutas e aventuras pela conquista do coração da linda princesa Rosa, a quem não deixava de enviar mensagens musicais, por meio dos serviços de alto-falantes então existentes na cidade, no que gastava todos os trocados que as almas caridosas punham em suas mãos.    

                                                    X – ZÉ DO SACO
Toda vez que passo em frente
do nosso lindo e imponente
palácio municipal,
vem-me à mente, num instante,
o retrato hilariante
de um louco sentimental.

Aquele que, bem ali,
por várias vezes, ouvi
falar, em tom de franqueza,
da imaginária aventura
em que vivia, à procura
de sua amada princesa.

Refiro-me a Zé do Saco,
tipo raquítico e fraco,
pobre quanto quixotesco,
e cuja “triste figura”,
na catedral da loucura
ganhou direito a afresco.

Advém o apelido
de seu alforje puído,
cheio de velhos jornais.
Mas, segundo ele afirmava
– papéis em que registrava
seus feitos fenomenais.

Sonhando, sempre sonhando,
nosso herói ia narrando
toda a sua estória, assim
de um modo lento e tranquilo,
dando sinais de que aquilo
jamais chegaria ao fim.

Relatava que saíra
do “Reino de Sucupira”,
a fim de pedir a mão
da casta princesa Rosa,
a donzela graciosa
filha do Rei Salomão.

(Não se está tratando aqui
do sucessor de Davi
que sucedera a Saul.
Mas sim, do dono das “Minas”
e senhor das “Águas Finas”
do “Reino da Pedra Azul”).
... Ele falava de fadas,
de três serpentes aladas
e de uma bruxa horrorosa,
procedente de além-mar,
que aqui viera encantar
a linda princesa Rosa.

Dizia que, no caminho,
se perdera e que sozinho,
por mais de noventa sóis,
travara lutas renhidas,
todas por ele vencidas,
contra o “Reino dos Lençóis”.

Por fim, explicava o plano
para vencer o tirano
de “Cachoeira do Sul”,
o seu rival na carreira
pela conquista da herdeira
do trono de “Pedra Azul”.

A estória só tinha pausa
quando a dor que a fome causa
o arrancava do fascínio,
a lhe ordenar, sem manobras,
que fosse comer as sobras
da pensão do Patrocínio.

Ele atendia. Em seguida,
uma rápida saída
para pedir uns trocados
que, nos serviços de som
do Betinho e do Milfont,
seriam logo aplicados.

Fundo musical no ar,
quedava mudo a escutar
a completa locução
da mensagem carinhosa,
por ele enviada a Rosa
“com muito amor e paixão”.

O que fazia num dia
no outro ele repetia.
Viveu, pois, dias iguais,
com duas marcas notórias:
as fabulosas estórias
e as mensagens musicais.

(Lago, Kleber. Os Loucos de Minha Terra. São Luís: KCL, 2007)

Quero repetir aqui que os termos “louco” e “loucura” não estão empregados em seu sentido real e que a minha intenção, ao escrever o poema, longe de ridicularizar, foi mostrar certas diferenças de comportamento dessas pessoas em relação ao das que são consideradas sãs, o que marcou de forma indelével a passagem delas na vida de Pedreiras.

Dei aos meus “loucos” o devido respeito e fiz questão de referir-me à “loucura” como algo a que todos nós estamos sujeitos, incluindo-me também entre Os Loucos de Minha Terra, conforme se pode observar na Introdução do poema:

Poeta, médico e louco / todos nós somos um pouco. / Eis uma verdade pura / que Erasmo já conhecia, / ao fazer com maestria / O Elogio da Loucura. //
Loucura é mal necessário / nesse humano itinerário. / E afirmo que ninguém há de / viver, que seja um segundo, / sem se deparar no mundo / com alguma insanidade. //
Houve loucos governantes; / loucos guerreiros, amantes; / e loucos que, por seus feitos, / se tornaram grandes gênios / e vão ser, pelos milênios, / lembrados como perfeitos. //
Se a loucura quer alguém, / chega e não escolhe quem. / Não poupou nem a Jesus / que, diante dos filhos seus, / muito embora fosse Deus, / se deixou pregar na cruz. //
[...] No poema homenageio / os loucos que, em nosso meio, / “lunatizaram”. E, assim, a homenagem que lhes faço / também alcança um pedaço / do louco que existe em mim.

A leitura de “Os Loucos de Minha Terra” requer, pois, o mesmo respeito que tive e tenho à memória de seus personagens. Obrigado!   

                                        Kleber Lago